Salézio José Martins reinventou-se profissionalmente quando estava perto dos 40 anos. Hoje, aos 71, ele olha com orgulho para o caminho percorrido – não apenas pela construção de uma das maiores fabricantes de roupas infantis do Brasil, a Kyly, mas por ter feito isso com a participação essencial da família. “Preservar a união em casa era mais importante do que o sucesso nos negócios. Ter conseguido as duas coisas é uma bênção”, afirma.
Na década de 1980, Salézio, formado em Letras, trabalhava como repórter num jornal de Blumenau e dava aulas de Português e de Redação em escolas da cidade. Mesmo com o cotidiano atarefado, o orçamento doméstico permanecia sempre no limite. Claudete, a esposa, cuidava das três filhas pequenas do casal e ainda encontrava tempo e disposição para prestar serviços de costura.
Certo dia, Salézio soube que a Hering estava colocando à venda teares usados e decidiu investir na compra de duas máquinas, que instalou na garagem de casa. A ideia era produzir malha de algodão para vender às confecções da região. Com o propósito de ter pelo menos um cliente fiel, ele incentivou o pai, José, descendente de alemães que começara a vida como agricultor, a abrir uma confecção.
Quando Salézio nasceu, a família morava em Major Gercino, cidade até hoje muito pequena, com apenas 3,5 mil habitantes. O menino trabalhou na roça desde pequeno. Depois veio a mudança para Presidente Nereu e chegaram muitos outros irmãos – ele é o segundo filho de um total de 13. Além de cuidar da casa e das crianças, a mãe, Matilde, tratava os animais e, quando sobrava algum tempinho, pegava a enxada para ajudar.
“Meus pais me transmitiram dois grandes ensinamentos: o valor do trabalho e a importância da fé”, lembra Salézio. O sonho de José era que um dos filhos se tornasse padre. Três chegaram a ir para o seminário – Salézio foi um deles. Mas, assim como os irmãos, desistiu de seguir a vida sacerdotal. A explicação: “Percebi que eu teria mais chance de me tornar um bom cristão do que um bom padre”.
Poucos anos depois, já morando em Blumenau e fazendo o curso de Letras na Universidade Regional de Blumenau (FURB), ele conheceu Claudete, apresentada por amigos em comum. “Foi amor à primeira vista. Senti um raio atravessando o meu peito”, descreve. Então veio o casamento, o nascimento das três primeiras filhas e, dez anos depois, a compra dos teares usados. Com Claudete supervisionando rigorosamente a qualidade, a produção da malha de algodão encontrou um vasto mercado.
Dois anos mais tarde o casal comprou um terreno em Pomerode e lá iniciou a construção de um galpão com 540 metros quadrados para abrigar o crescimento do negócio. Como a confecção de José ia mal das pernas, acumulando dívidas, Salézio propôs assumir o negócio do pai, que rebatizou de Kyly. Era o apelido de Karine, a filha mais nova aquela altura – a caçula “definitiva”, Naraline, ainda não havia nascido.
A inauguração da nova sede, no dia 18 de julho de 1987, deveria ser um momento feliz, mas foi marcado por um acontecimento trágico: a morte de José, vitimado por um ataque cardíaco fulminante em plena celebração.
Mesmo em meio a tanta tristeza, não havia outro caminho que não fosse seguir adiante. Com mais espaço e maquinário ampliado, o negócio evoluiu da produção de tecido para a confecção de roupas. No começo, a empresa executava projetos dos clientes. A primeira encomenda de peso veio da rede Sabina, do Rio de Janeiro, com lojas também em São Paulo e Recife. Depois foram chegando pedidos de gigantes da época, como Mappin e Mesbla.
Taciane, a filha mais velha, começou a trabalhar na empresa ainda adolescente. Atendia os grandes clientes e, com isso, foi aprendendo os macetes do mercado e dos desenhos das peças. Passou a criar coleções. O público gostou especialmente das infantis, que davam bom retorno financeiro – as peças, repletas de estampas e detalhes, tinham maior valor agregado. “Com a vantagem de que as crianças crescem rápido e sempre precisam de novas roupas”, ressalta Salézio.
A Kyly encontrava, assim, a sua grande vocação: roupas infantis com cores fortes, marcantes. Hoje, a marca lança quatro coleções por ano, cada uma delas com cerca de 130 modelos. Quando se dedicou ao projeto de exportar, a empresa concluiu que a preferência na Europa era por roupas menos chamativas. Assim surgiu, em 2006, a marca Milon, com modelos infantis mais sóbrios – algo que também acabou agradando muitos consumidores no Brasil. Além das exportações para 30 países, a Milon virou rede de franquias e já passou de 70 lojas.
Taciane continua na empresa, como diretora de marketing, enquanto Karine atua na área de inovação. As duas trabalham a distância, pois moram nos Estados Unidos – e são justamente elas que têm os cinco netos de Salézio e Claudete. “Estamos sempre indo e eles vindo, mas tivemos que dar uma parada por conta da pandemia. A saudade está enorme”, descreve o avô. As outras filhas – Michele, formada em Publicidade e Propaganda, e Naraline, em Comércio Exterior – desenvolvem suas carreiras fora da empresa familiar e ainda não têm filhos.
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Comitê | Em 2010, quando a empresa completou 25 anos, Salézio deixou o dia a dia do negócio, assumindo a presidência do Conselho de Administração. A primeira tentativa com um executivo profissional não foi bem-sucedida. Aos poucos, a empresa foi encontrando uma forma peculiar de gestão. O poder é dividido entre três diretores, que tomam as decisões em comitê: além de Taciane, os outros são Robson Heidemann, responsável pela parte industrial, e Claudinei Martins, um dos irmãos caçulas de Salézio – são 20 anos de diferença entre os dois. “Ele certamente está conosco pela competência que tem, tanto que fui buscá-lo no Banco do Brasil para ser o nosso diretor comercial”, descreve o fundador.
As marcas Amora e Lemon, voltadas ao público pré-adolescente, surgiram como uma estratégia para ampliar a duração do relacionamento com a clientela. Outra novidade foi a Nanai, marca infantil que remete a conceitos de brasilidade. No final do ano passado o grupo inaugurou a própria fiação, a Fio Puro, resultado de um investimento de R$ 44 milhões.
Satisfeito com a equipe que montou, Salézio acompanha com tranquilidade a evolução dos negócios. Como não precisa ir diariamente à empresa e detestaria a ideia de ficar parado, continuou sempre exercitando a vocação empreendedora. Já investiu no ramo de energia e participou da sociedade que construiu uma moderna fábrica de cimentos em Adrianópolis (PR).
Começou, também, a criar gado em três propriedades na região serrana catarinense, em Lages e Painel. Iniciou aos poucos e já chegou a 3 mil cabeças. “Não adianta, a gente tem que estar sempre arrumando alguma coisa para se incomodar”, ele se diverte.
kyly
- Fundação: 1985
- Sede: Pomerode
- Marcas: Kyly, Nanai, Milon, Amora e Lemon
- Produção: 15 milhões de peças/ano
- Distribuição: 10 mil pontos de vendas no País, 70 lojas Milon e exportações para 30 países
- Faturamento: R$ 460 milhões (2019)
Por Maurício Oliveira