O amadurecimento da discussão sobre a reforma tributária trouxe à luz situações que estiveram, durante muito tempo, escamoteadas sob narrativas dominantes acerca de determinados setores da economia. A excelência da agricultura brasileira é um desses casos, que se contrapõe à narrativa corrente de uma suposta ineficiência da indústria, que precisaria de proteção contra a concorrência estrangeira para sobreviver.
Um olhar mais atento à estrutura de tributação dos dois setores, entretanto, revela que as diferenças de desempenho nas últimas décadas têm origem em outros fatores. Enquanto a indústria paga o equivalente a 45% de toda a riqueza que gera em impostos, o peso para o setor primário é de apenas 6%. Isso explica, em parte, por que investir em lavouras de soja ou milho é muito mais rentável do que fabricar produtos complexos – quanto mais longas as cadeias produtivas, maior costuma ser o peso dos impostos. No caso dos serviços, a tributação corresponde a 23% de suas receitas totais.
“O valor agregado na indústria é muito mais tributado do que o valor agregado nos serviços, por exemplo. O sistema tributário atual induz à agregação de valor em um setor que pode ser menos eficiente do que o outro”, afirma o economista Bernard Appy, autor de uma proposta de ampla reforma tributária no País, que se tornou o Projeto de Emenda Constitucional 45 (PEC 45/2019) que tramita na Câmara dos Deputados. Vale ressaltar que tal distorção colide com um princípio básico de que qualquer bom sistema tributário tem que ser neutro, ou seja, não deve influir sobre a decisão do empresário ou do cidadão.
A alta carga tributária imposta à indústria é uma das causas do processo de desindustrialização por que passa o País. O desastre não foi maior devido a inúmeras iniciativas de desonerações e incentivos que visaram compensar a alta carga. Por outro lado, esse processo colaborou para tornar ainda mais confuso o cenário e atentar contra a imagem da indústria, que passou a ser associada a benefícios.
Portanto, não é à toa que, mesmo diante das incertezas causadas pelo novo coronavírus, a reforma tributária continue sendo central na agenda para competitividade da indústria. O principal objetivo é a desoneração do setor produtivo, condição que está contemplada nos dois principais projetos em análise nas casas legislativas – além da PEC 45, o Senado examina a PEC 110/2019, e é possível que uma proposta unificada seja elaborada. O executivo também deverá apresentar suas propostas, que poderão se tornar um novo projeto ou ser incorporadas aos projetos em análise.
Desoneração | No cerne das propostas está a extinção de vários tributos que incidem sobre a produção (IPI, PIS/Pasep, Cofins, ICMS e ISS, no caso da PEC 45) e a criação de um imposto sobre valor agregado que é cobrado na outra ponta, a do consumo. “Nesse caso, com adoção de sistema de créditos financeiros que garantam a não-cumulatividade sobre valor adicionado, a indústria será menos onerada do que hoje em dia”, diz Evair Oenning, presidente da Câmara de Assuntos Tributários da FIESC.
Além desse ponto central, a expectativa da indústria é de uma grande faxina no sistema tributário mais complexo e burocrático do mundo. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as empresas brasileiras gastam em média 2.600 horas por ano somente para o cumprimento de obrigações contábeis e administrativas. Sem contar a falta de transparência do sistema, a sobreposição de normas e a grande quantidade de novas regras e tributos que são editados continuamente nas esferas municipal, estadual e federal. “O sistema atual não dá segurança para o empresário, que às vezes não tem como saber se está agindo corretamente ou não. Precisamos de segurança jurídica”, afirma Carlos José Kurtz, diretor institucional da FIESC.
A simplificação, porém, pode causar dores de cabeça no início. As duas propostas preveem longas transições de um sistema para outro. Dessa forma, os empresários deverão estar estruturados para atender às atuais exigências e às novas ao mesmo tempo, correndo-se o risco de complicar ao invés de simplificar, e de aumentar custos ao invés de diminuir.
Esta é apenas uma das muitas arestas que terão que ser aparadas em uma reforma dessa magnitude. Outra delas diz respeito a estados e municípios. A cobrança do imposto no destino provocará mudanças na arrecadação dos entes federativos, sendo que os estados produtores, como Santa Catarina, deverão ter queda de arrecadação nos primeiros anos. A compensação deverá vir pela constituição de um fundo compensatório que funcionaria durante certo tempo.
A boa notícia é que há uma inédita disposição para levar adiante a reforma, que conta com apoio mais ou menos explícito de todos os governadores e secretários da Fazenda do País. Governadores e prefeitos, de acordo com Bernard Appy, sempre foram resistentes a mudanças por temerem perda de arrecadação de ICMS e ISS, além de perderem o poder de conceder incentivos fiscais – o fim da chamada guerra fiscal é outro ponto defendido pela indústria e que está contemplado pelos projetos da Câmara e do Senado.
Dez pontos no PIB | Considerando a crise causada pela pandemia do coronavírus, a expectativa é de que no meio político o ambiente siga propício para a reforma que é tentada há décadas, mas que sempre foi barrada por grupos de interesse. Na indústria, espera-se que o texto principal possa ser aprovado em 2020 e as leis complementares, que detalharão e darão materialidade ao novo sistema tributário, em 2021. “É fundamental para a indústria, que estará cada vez mais exposta à concorrência internacional em função de acordos como o que o Mercosul firmou com a União Europeia”, diz Evair Oenning.
De acordo com cálculos de especialistas, uma reforma como a proposta, que sequer diminuirá a carga tributária total, mas que simplifique a cobrança e a faça de forma mais justa entre os setores da economia e diferentes tipos de contribuintes, é capaz de impulsionar fortemente a economia do País. “Os benefícios são monumentais. Estamos falando de um impacto superior a 10 pontos percentuais no PIB potencial. Além disso, haverá aumento do poder de compra da população, redução no custo do investimento e eliminação de distorções competitivas”, afirmou Bernard Appy em seminário sobre o tema realizado na FIESC.
Quem paga a conta
Carga tributária brasileira por setores, em relação ao PIB setorial (2017)
- Indústria de transformação: 44,6%
- SIUP*: 42,3%
- Comércio: 37,9%
- Serviços: 23,2%
- Construção: 15,4%
- Agropecuária/Extrativa: 6,1%
Fonte: Firjan
(*) Serviços industriais de utilidade pública
Pontos defendidos pela indústria
- Simplificação da arrecadação
- Unificação de IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS, com regulamento e alíquotas uniformes em todo o País e fixadas pelo Congresso Nacional
- Garantia à não-cumulatividade ampla, com adoção de sistema de créditos financeiros e ressarcimento imediato nas exportações
- Manutenção de tratamento diferenciado para micro e pequenas empresas (Simples)
- Fim da guerra fiscal
- Revisão do pacto federativo, com redistribuição de competências e responsabilidades
- Criação de fundos compensatórios para: a) entes federativos prejudicados; b) contribuintes contemplados com benefícios fiscais específicos; c) consumidores de baixa renda
- Não adoção de imposto sobre movimentação financeira
- Aplicação imediata da reforma com prazo mais curto de transição
Fonte: Câmara de Assuntos Tributários da FIESC