Foto: Divulgação Intech Boating
No dia 23 de dezembro de 2010 o empresário José Antonio Galizio Neto recebeu uma visita fortuita durante o churrasco de encerramento de ano dos funcionários da Intech Boating, fábrica de embarcações inaugurada havia três anos em Palhoça. Um diretor da Sessa Marine, uma das mais tradicionais marcas de iates da Itália, buscava um parceiro no Brasil para expandir as atividades e gostaria de conhecer a empresa. A conversa rendeu e, em março de 2011, Neto estava na Europa assinando um contrato de intenções. Cinco meses depois, o primeiro iate da Sessa Marine no Brasil era concluído no Bairro Pedra Branca.
A sociedade com os italianos acelerou a entrada da Intech no nicho de barcos de lazer. Neto começou a empresa focado no setor de embarcações de uso profissional, mas já tinha planos de começar a construir iates num futuro próximo. “Nosso target inicial era institucional: setor de gás e óleo, serviços portuários, frota de fiscalização e controle ambiental. Mas fomos tão bem com os barcos de lazer que, hoje, eles correspondem a praticamente 100% da nossa produção. Ainda atendemos clientes do setor de serviços para renovar frota, mas é coisa de três unidades por ano”, revela Neto.
O interesse da Sessa Marine em investir em Santa Catarina não surgiu do acaso, e nem foi motivado pela beleza do litoral catarinense. Em julho de 2009, um ano e meio antes do churrasco que inaugurou a sociedade com a Intech Boating, o Governo do Estado lançou o Programa de Incentivo à Indústria Náutica, o Pró-Náutica. Na mesma linha de benefícios concedidos às indústrias têxtil, moveleira, de cristais e outros setores, o decreto passou a conceder redução de carga tributária do ICMS de 25% para 7% para fabricantes de embarcações de lazer. Com o Pró-Náutica Santa Catarina manteve a competitividade com os estados do Rio de Janeiro e São Paulo, que haviam baixado medidas semelhantes meses antes.
“Mas Santa Catarina fez um trabalho muito bem-feito, com um benefício realmente atrativo e simples que tornou o Estado muito competitivo. Tanto que, até então, os polos de fabricação eram Rio de Janeiro e São Paulo. Depois do Pró-Náutica, Santa Catarina tomou a liderança”, atesta Eduardo Colunna, presidente da Associação Brasileira dos Construtores de Barcos e seus Implementos (Acobar).
Fundador da primeira fábrica de jet skis do Brasil nos anos 1980, Colunna também vislumbrou incentivos suficientes para, em 2017, transferir a Colunna Yachts, sua fábrica de jet boats, de São Paulo para Itajaí. “Já havia empresas aqui e o benefício do ICMS trouxe mais empresas, formando um cluster muito eficiente, com mão de obra qualificada e uma cadeia produtiva consolidada”, conclui Colunna.
Galizio Neto: sociedade com italiana deu guinada nos negócios - Foto: Divulgação Intech Boating
Segredos | A escalada náutica transformou a cidade de Itajaí, que com seus portos e uma tradicional indústria de construção naval inicialmente mais voltada a embarcações comerciais sempre teve uma forte ligação econômica com o mar. “Em 10 anos o perfil da cidade mudou. De cidade operária para náutica”, afirma Evandro Neiva, secretário de Turismo e Eventos de Itajaí, ressaltando toda a cultura de lazer náutico que se consolidou na cidade juntamente com a indústria de embarcações de lazer (leia o box).
Um setor que decolou
Indústria de embarcações esportivas e de lazer no Brasil
-
Empregos diretos
7,5 mil
(metade em SC)
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Empregos indiretos
30 mil
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Geração de impostos
R$ 750 milhões
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Produção
3,5 mil barcos/ano
(70% em SC)
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Faturamento
R$ 2 bilhões
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Crescimento
25% (2020)
20% (2021)
25%* (2022)
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Exportações
US$ 120 milhões
(2021)
Fonte: Acobar. (*) Projeção
Neiva e todos os fabricantes da cidade participaram recentemente do São Paulo Boat Show, considerado a maior feira náutica da América Latina. “Entre os segredos para o sucesso está o fato de a cidade ver os empresários como parceiros e não como fonte de arrecadação”, afirmou o secretário durante o 7º Congresso Internacional Náutico, que aconteceu junto à feira.
Hoje, Santa Catarina é responsável por 70% das embarcações de lazer fabricadas no Brasil, e responde por 90% das exportações. Concentradas em Itajaí e também na região da Grande Florianópolis, empresas fundadas por brasileiros como a Schaefer, Fibrafort, Sedna, FS e a própria Intech dividem espaço com grupos estrangeiros como a italiana Azimut e a fábrica norte-americana de motores para barcos Mercury Marine.
No ano passado a Okean, que produz iates com a marca italiana Ferretti Yachts, transferiu suas operações de Guarujá, no litoral paulista, para Itajaí, em um investimento de R$ 110 milhões. De acordo com a Acobar, mais da metade dos 7.500 postos de trabalho do setor no País estão em Santa Catarina. Somente os cinco maiores estaleiros geraram nos últimos cinco anos R$ 700 milhões em impostos, mesmo com o desconto no ICMS.
Com uma planta de 7 mil metros quadrados, a Intech deve dobrar de tamanho até 2024 para fazer frente a um novo desafio da empresa: exportar suas embarcações. Além de aumentar a área produtiva para 16 mil metros quadrados, a nova fase da Intech deve incorporar mais 60 vagas de trabalho aos 280 funcionários que hoje atuam na fábrica.
“Ainda atendemos apenas o mercado nacional, mas sempre acreditei que a exportação é um dos caminhos para a indústria náutica brasileira. Produzir um barco nos Estados Unidos e na Europa está cada dia mais difícil pelo valor da mão de obra, diz Neto, que aponta as vantagens do modelo mais verticalizado do Brasil, que acaba facilitando a produção e a competitividade.
Iates 4.0 | O estaleiro da Azimut Yachts em Itajaí, único no mundo fora da Itália, também investe para aumentar a produtividade. A unidade vai começar a utilizar em outubro o sistema APS (Advanced Planning and Scheduling) da Siemens, um software com conceitos da Indústria 4.0 que deve integrar e digitalizar todos os processos fabris na unidade. O plano é reduzir em 25% o tempo de entrega das embarcações e aumentar em 25% a capacidade produtiva do estaleiro, que produz entre outros modelos o Azimut 27 Metri, também conhecido como “o barco do Cristiano Ronaldo”, famoso jogador de futebol de Portugal.
Azimut Yachts: digitalização dos processo para reduzir 25% do tempo de entrega - Foto: Divulgação Azimut Yachts
Os recentes investimentos em ampliação e modernização das plantas industriais do Estado devem-se em boa parte à Covid-19. A pandemia trouxe desdobramentos inesperadamente positivos para o mercado mundial de iates. Com as restrições a viagens e a orientação de isolamento, a compra de um barco de lazer se tornou uma opção convidativa para a população com dinheiro suficiente para a aquisição. As vendas no Brasil cresceram 25% em 2020 e mais 20% em 2021, segundo a Acobar. O melhor é que, mesmo após a pandemia, as perspectivas do setor seguem em alta: a projeção de crescimento para este ano é de 25% (veja o quadro).
“Foi surpreendente a guinada que a pandemia deu nos negócios. Todo mundo esperava uma crise muito forte e foi o contrário”, conta o diretor de Marketing da Schaefer Yachts, Rodrigo Loureiro. “Temos essa percepção, pelas conversas com clientes e revendedores, de que as pessoas, ao deixarem de gastar com viagens e extravagâncias, escolheram um produto que permite estar somente com a família, os amigos próximos, e em isolamento”, avalia o executivo.
A empresa, que conta com estaleiros em Palhoça, Biguaçu e na cabeceira da Ponte Hercílio Luz, em Florianópolis, tem 30 anos de existência e é considerada uma das maiores do continente. Conta com 700 funcionários e a maior linha de barcos da América do Sul, com modelos que variam de 30 a 83 pés de comprimento e preços que variam de R$ 1 milhão a R$ 30 milhões.
Foto: Divulgação Schaefer Yachts
Certificação | A Schaefer começou a exportar em 2005. Há seis anos possui um escritório em Fort Lauderdale, na Flórida. Cerca de 40% da produção vai para o mercado norte-americano e também para a Europa, Dubai, Singapura, Austrália e para os países vizinhos na América do Sul. “Houve uma barreira para entrar nesses mercados, mas ela foi superada pela qualidade reconhecível do nosso produto, e porque temos todos os certificados de qualidade exigidos nesses mercados”, explica Loureiro.
A certificação internacional, inclusive, é uma das maiores bandeiras da Acobar no último decênio. Desenvolvida em parceria com a ABNT, ela é considerada essencial para a maior participação da indústria brasileira no mercado mundial. Mas para atingir a “qualidade reconhecível” citada por Loureiro, a Schaefer também investiu pesado em tecnologia e maquinário.
Uma máquina fresadora com CNC (Computer Numeric Control), com cinco eixos e 25 metros de comprimento, garante a produção de moldes perfeitos para todos os modelos da marca. A empresa dominou o processo de infusão a vácuo (também utilizado na Intech) para garantir um alto controle de matéria-prima e a diminuição de emissão de solventes na atmosfera. Em resumo, em vez de ter várias pessoas de cada lado do casco aplicando resina, no processo de infusão se coloca a mesma quantidade exata de material por centímetro cúbico do casco, garantindo um material mais leve, resistente e econômico.
Loureiro não poupa modéstia ao afirmar o papel da Schaefer na consolidação de um cluster de indústria náutica no litoral de Santa Catarina. O Pró-Náutica certamente provocou um boom no setor a partir de 2009, mas antes disso a empresa já havia desenvolvido uma série de fornecedores de materiais como tecidos e aço inoxidável. Este, inclusive, é fornecido por uma indústria que nasceu dentro da Schaefer e hoje viabiliza material para todo o mercado nacional, a Xexeumar. Localizada em São José, a empresa fornece mais de mil itens para a indústria náutica, entre dobradiças, verdugos, conexões e afins.
Instalações da Schaefer Yachts: fresadora de cinco eixos garante moldes perfeitos - Foto: Divulgação Schaefer Yachts
Motores | O desenvolvimento da cadeia produtiva e as vantagens logísticas do litoral de SC, com seus portos e a BR-101 para o escoamento de carga, também ajudaram a transferir quase a totalidade das operações de distribuição da Mercury Marine de Manaus para Palhoça em 2015. A fábrica de motores para barcos localizada em Wisconsin, no centro-oeste dos Estados Unidos, é a principal fornecedora da indústria nacional – 90% dos barcos expostos no último São Paulo Boat Show contam com motores da marca instalados.
“Hoje eu sei que uma carga vai chegar no dia seguinte a São Paulo. Em Manaus, mesmo com as vantagens da Zona Franca, a logística era muito mais complicada. O Pró-Náutica teve papel importante, mas o fato de ser um polo do setor também pesou na decisão de instalação da unidade em Palhoça”, confirma o diretor comercial da empresa, Eduardo Coelho.
Graças em grande parte à existência de tantos fornecedores e da mão de obra especializada desenvolvida pelo setor, o polo náutico catarinense também atraiu recentemente investimentos do Governo Federal, mais precisamente da Marinha do Brasil, em convênio com a multinacional alemã thyssenkrupp. A construção de quatro navios-escolta de alto poder combatente deve absorver recursos de US$ 1,6 bilhão. Conforme planejado, o Programa Fragatas Classe Tamandaré iniciou a construção da primeira embarcação no começo de setembro, quando foi feito no Estaleiro tkEBS, em Itajaí, o corte da chapa do casco. O último dos quatro navios deve ser entregue em 2029, mas o projeto deve se estender por pelo menos três décadas.
Mais marinas, por favor
Falta de estruturas de apoio náutico emperra o mercado nacional de embarcações de lazer.
Foto: Divulgação Acioni Cassaniga
A gigantesca costa do País – e suas represas, lagos e rios navegáveis – é um mercado com forte potencial não explorado. Com uma frota de 70 mil embarcações de lazer com mais de 16 pés, o Brasil participa com apenas 0,4% do PIB mundial do setor. O crescimento esbarra, principalmente, na escassez de estruturas de apoio náutico, como marinas e iate clubes. “É a grande limitação do mercado náutico no Brasil. Muitas pessoas não têm barco porque o custo de manutenção é alto, as marinas estão lotadas, cobrando o quanto querem”, critica Rodrigo Loureiro, diretor de Marketing da Schaefer Yachts.
Se por um lado Santa Catarina domina a produção e as exportações de iates no Brasil, a maior parte dos clientes brasileiros se concentra na Região Sudeste, aportados em localidades como Angra dos Reis, Búzios, Ilhabela e Guarujá. A Marina Tedesco (Balneário Camboriú), com 500 vagas, e a de Itajaí, com 350, são as maiores estruturas do tipo no Estado. A marina de Itajaí tem um plano de expansão para quase triplicar a capacidade nos próximos anos. De acordo com a prefeitura também está prevista a construção de um novo terminal de passeios, para colocar a cidade na rota dos transatlânticos de cruzeiro.
Em Florianópolis, a Marina da Beira-Mar Norte deve começar a ser construída no início do ano que vem. A proposta indica 60 vagas públicas e 624 vagas privadas, além de um parque público com 123 mil metros quadrados. “A Marina de Florianópolis será um marco para Santa Catarina, trazendo desenvolvimento para a região”, afirma José Antonio Galizio Neto, da Intech Boating.
O empresário tem argumentos para desmistificar a ideia de que os iates estão somente associados ao mercado de luxo. “Cada barco que eu produzo gera cinco ou seis empregos. Quando ele sai da fábrica, um motorista de caminhão o leva até a marina. Lá tem o eletricista, o mecânico, o restaurante”, enumera Galizio Neto. “Um barco de R$ 1 milhão gera muito mais emprego e renda do que um apartamento de R$ 1 milhão.”
A Acobar estima um déficit de 55 mil vagas para embarcações no Brasil. Se a demanda reprimida for atendida, a entidade projeta uma injeção de R$ 2,5 bilhões para implementação de instalações de apoio náutico, com geração de 140 mil empregos.
Mercado interno
tem enorme potencial de crescimento
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7,5 mil km
Extensão do litoral brasileiro
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60 mil km
Águas interiores navegáveis
-
0,4%
Participação do Brasil no mercado mundial náutico de lazer
Fonte: Acobar
Não precisa ser milionário
Barcos de luxo chamam a atenção, mas setor deseja popularizar o mercado.
Foto: Divulgação Fibrafort
A gigantesca costa do País – e suas represas, lagos e rios navegáveis – é um mercado com forte potencial não explorado. Com uma frota de 70 mil embarcações de lazer com mais de 16 pés, o Brasil participa com apenas 0,4% do PIB mundial do setor. O crescimento esbarra, principalmente, na escassez de estruturas de apoio náutico, como marinas e iate clubes. “É a grande limitação do mercado náutico no Brasil. Muitas pessoas não têm barco porque o custo de manutenção é alto, as marinas estão lotadas, cobrando o quanto querem”, critica Rodrigo Loureiro, diretor de Marketing da Schaefer Yachts.
Iates suntuosos como o Azimut 27 Metri, com seus 88 pés e 350 metros quadrados de área, cinco suítes e três pavimentos, ou o Schaefer 770 (77 pés), que tem até um ofurô no deque e acomodações dignas de hotéis cinco estrelas, tornam difícil negar que eles integram um mercado de luxo – as mansões náuticas citadas custam algumas dezenas de milhões de reais.
No entanto, 60% dos barcos que singram os mares do Brasil e do mundo têm até 26 pés de comprimento. São lanchas menores e mais simples que satisfazem boa parte da clientela interessada pela vida náutica com preços bem menores de compra e manutenção. Nessa linha, no primeiro semestre o estaleiro Fibrafort, de Itajaí, promoveu uma feira em Balneário Camboriú para promover sua linha Focker, cujos barcos mais acessíveis têm 25 pés e estavam saindo a partir de R$ 174,9 mil. A empresa produz modelos ainda menores, de 18 pés, e graças em grande parte a esses modelos “de entrada” consegue vender até 800 unidades por ano.
Segundo Fernanda Velloso, assessora de Marketing da Acobar, popularizar o acesso é essencial para o mercado interno se desenvolver. “Buscamos a criação de rampas públicas para as pessoas poderem descer seus barcos e aproveitar o dia. Não precisa ser milionário para ter um barco.”