A viabilidade do Complexo Ferroviário Catarinense é questionada com base em premissas erradas. Adotar a perspectiva correta e tirar os projetos do papel é essencial para solucionar os entraves logísticos do Estado.
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O futuro de Santa Catarina pode ficar seriamente comprometido por um “mito” – que neste caso se define por uma ideia falsa, distorcida, formada pela análise de um assunto complexo a partir de premissas erradas. Nos últimos tempos ganhou força o mito de que a implantação de um complexo ferroviário em Santa Catarina é inviável. Mas isso não é verdade. É preciso olhar para o problema com a perspectiva correta.
Um exemplo: ainda há hoje em dia quem se refira à Ferrovia Leste-Oeste como “Ferrovia do Frango”. Ora, a se supor que tal estrutura serviria basicamente ao transporte de frangos aos portos para exportação, é mesmo de se questionar a sua viabilidade. Ocorre que ela é muito mais do que isso, pois o Oeste do Estado possui enorme densidade e diversidade industrial, que demanda insumos e despacha mercadorias de alto valor agregado para os portos e para o mercado interno. Não só a agro, mas toda a indústria da região necessita de novas soluções logísticas.
Outro exemplo de premissa errada que leva a conclusões equivocadas: a Ferrovia Litorânea interligará os portos do Estado. Posto desta forma, como é usual, não faz mesmo muito sentido. Sua maior finalidade, entretanto, será conectar os portos catarinenses à malha nacional, permitindo finalmente que os produtos importados e exportados possam entrar e sair dos portos por vias férreas, conectadas aos maiores centros consumidores e produtores do Brasil. Não há porto relevante no mundo que não seja servido por linhas férreas robustas e eficientes. Porém, os portos catarinenses que estão entre os que mais movimentam contêineres no País – Complexo de Itajaí e Itapoá – não possuem ligações ferroviárias.
Outra coisa que não faz sentido é pensar nas duas ferrovias separadamente. É evidente que os eixos são complementares e interdependentes, e somente a gestão integrada do complexo ferroviário, com a participação de outros modais, é capaz de tornar o conjunto atraente. Porém, tem-se aqui um vício de origem. Os projetos do Corredor Leste-Oeste e da Ferrovia Litorânea foram desenvolvidos separadamente, o primeiro pela empresa estatal federal Valec e o segundo pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), sem que a integração plena dos projetos fosse considerada nos estudos.
Todas essas questões, e outras mais, estão contempladas em uma nova abordagem desenvolvida pela FIESC para finalmente viabilizar o Complexo Ferroviário Catarinense. Devido a uma série de impasses, entraves, falta de dinheiro e falta de vontade política, ambos os projetos estavam prestes a ser abandonados ou seriamente desfigurados. “Não podemos desistir das ferrovias. Elas são essenciais para a competitividade do Estado, que já está no limite da capacidade logística”, diz Mario Cezar de Aguiar, presidente da FIESC.
Porto de Rotterdam, na Holanda: principais portos do mundo são conectados a ferrovias - Foto: Edwin Muller Photography / Shutterstock
Atualização | De acordo com a proposta da Federação, deverá ser realizada a atualização dos dados para os Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Socioambiental (EVTEA) dos projetos do Corredor Leste-Oeste e da Ferrovia Litorânea de forma integrada, considerando as cargas de valor agregado, a intermodalidade e incorporando a carga industrial. Trata-se de redefinir o papel das ferrovias em um contexto diferente do que se vislumbrava até então. “Santa Catarina tem um enorme potencial de transporte de cargas de alto valor agregado, o que garante a viabilidade das ferrovias dentro de um conceito de intermodalidade”, afirma Aguiar.
O debate sobre ferrovias no País parece amarrado à ideia de que o Brasil é competitivo na produção de commodities agrícolas e minerais, e os recursos escassos à infraestrutura devem estar voltados às demandas destes setores. Não é por outro motivo que o Plano Nacional de Logística e Transportes (PNLT), do Ministério da Infraestrutura, elaborado para nortear os investimentos no País, inicialmente ignorou Santa Catarina, um estado industrial, a despeito de sua inequívoca vocação logística, com cinco portos.
Na prática, essa visão preponderante sempre jogou contra os interesses de Santa Catarina. Após concluir o EVTEA do Corredor Leste-Oeste, por exemplo, a Valec declarou que não realizaria as etapas seguintes (levantamento aerofotogramétrico e projeto básico do empreendimento) porque a ferrovia não estava contemplada no PNLT. A situação começou a mudar com a interferência da FIESC junto ao Ministério da Infraestrutura. A Federação ofereceu subsídios e convenceu a equipe técnica do ministério, que incluiu os corredores catarinenses como prioritários na nova versão do Plano Nacional, com base no livro Proposta para inserção de Santa Catarina no contexto logístico nacional, assinado por Egídio Martorano, gerente para assuntos de transporte, logística, meio ambiente e sustentabilidade da FIESC.
Numa etapa seguinte, a FIESC reivindicou a elaboração da nova etapa do projeto das ferrovias. Um dos principais argumentos é de que, mesmo tendo sido feitos separadamente, os dois projetos apresentaram viabilidade socioeconômica – ainda que não tenham demonstrado viabilidade financeira. Em outras palavras, são obras estruturantes essenciais para o desenvolvimento do Estado, mas não seriam lucrativas caso fossem exploradas unicamente pela iniciativa privada.
“Mas essa é uma característica de quase todas as ferrovias, que geralmente se viabilizam por meio de Parcerias Público-Privadas”, diz Martorano. “Com a visão integrada das ferrovias e as planejando em um cenário de intermodalidade, definindo os melhores pontos de transbordo de carga para projetar terminais multimodais, certamente teremos trechos financeiramente viáveis”, afirma o executivo, sublinhando que neste caso seria reduzida a necessidade de aporte de recursos públicos.
A proposta é que se adote inicialmente, para o Corredor Leste-Oeste, o trecho que vai de Chapecó a Navegantes, e na Litorânea incluir uma extensão até o Porto de Itapoá – o porto sequer existia quando o projeto foi iniciado. Ainda no caso da Litorânea, a ideia é manter o traçado original sobre o Morro dos Cavalos, em Palhoça, buscando uma solução de consenso para a questão indígena. Pelo projeto original, um túnel passaria por debaixo de terras indígenas, o que travou o processo. A Fundação Nacional do Índio (Funai) propôs um traçado alternativo, encarecendo a obra em R$ 16 bilhões, o que na prática a inviabiliza.
Jogo dos 7 erros
Visões equivocadas que dificultam a criação de ferrovias em Santa Catarina
- Ferrovia do frango
- Apelido que pegou para o Corredor Leste-Oeste minimiza sua importância e questiona a viabilidade
- Ferrovia para interligar os portos
- Ideia errada difundida sobre a Litorânea põe em xeque sua utilidade. Seu real objetivo é conectar os portos à rede ferroviária nacional
- Dois projetos
- As duas ferrovias foram projetadas individualmente e por empresas diferentes. Como são integradas e complementares, deveria haver um único projeto
- Componente indígena
- Principal entrave da Litorânea é a terra indígena (ainda em reivindicação) no traçado, em Palhoça, mas o projeto prevê um túnel sob essas terras, cujas desembocaduras se encontram fora de seus limites
- Fogo amigo
- Falta de acordo sobre os traçados, motivada por interesses políticos locais, atrasou os projetos e levantou questionamento sobre competitividade das ferrovias
- Visão limitada
- Para serem atraentes, ferrovias devem ser consideradas como um modal integrante de um planejamento sistêmico e integrado. Isoladamente, podem parecer caras e ineficientes
- Exclusão da indústria
- Planejamento logístico do País considera demandas do setor de commodities agrícolas e minerais, e praticamente ignora as cadeias de suprimento e distribuição da indústria
Saturada | Outro ponto de negociação é a necessidade de rever o traçado em parte da Grande Florianópolis, pois a alteração do projeto do Contorno Viário, que está em execução, avançou sobre áreas inicialmente previstas para a Litorânea. Isso sem falar nos diversos interesses regionais que ao longo dos anos buscaram interferir no trajeto das ferrovias que estavam sendo projetadas. “Temos que adotar o traçado mais competitivo, considerando a intermodalidade”, defende Martorano.
A articulação da FIESC em busca de uma proposta única para o Complexo e para a solução dos principais impasses é sustentada na visão de que sem as ferrovias não haverá solução para as limitações logísticas de Santa Catarina. O colapso do trecho norte da BR-101 é prova disso. No longo prazo, não é possível deixar de enxergar a região como um corredor logístico intermodal, diante da impossibilidade de a estrada absorver o crescente tráfego de turistas, da movimentação portuária e da indústria em seu entorno. Já a BR-470, hoje a principal ligação do litoral com a região Oeste, está tendo um trecho duplicado, mas quando a obra for concluída – possivelmente em 2023 – já deverá estar novamente saturada.
O modal ferroviário responde atualmente por apenas 5% do transporte de cargas no Estado, e está em declínio. Estão em operação a Ferrovia Tereza Cristina, um trecho que conecta o Sul do Estado ao Porto de Imbituba mas não possui ligação com a malha nacional, e os trechos São Francisco do Sul-Mafra e o Ramal Sul, que corta o Estado entre Mafra e Lages. Estes últimos, apesar de relativamente extensos, são antigos, lentos e carecem de obras de contorno em cidades. Não são, portanto, competitivos para cargas industriais.
A ideia de integrar o Estado por meio de ferrovias é antiga. Em 1870, o governo imperial iniciou os estudos da Ferrovia D. Pedro I, que ligaria Desterro (atual Florianópolis) à capital da província do Rio Grande do Sul, mas o projeto foi abandonado. Já a Estrada de Ferro Santa Catarina operou algumas décadas ligando o Alto Vale do Itajaí ao litoral e tinha a ambição de um dia se estender até a Argentina. Porém, foi completamente desativada. A Ferrovia do Contestado, que cortava o Meio Oeste, também saiu de operação.
Proposta para consolidar o Complexo Ferroviário Catarinense
- Atualizar os EVTEAs dos projetos Corredor Leste-Oeste e Litorânea de forma integrada, considerando cargas de valor agregado, intermodalidade e carga industrial
- Incorporar ao projeto da Ferrovia Litorânea extensão do traçado para acesso ao Porto de Itapoá
- Buscar alternativa para novo traçado na zona metropolitana de Florianópolis
- Procurar solução de consenso para a questão do componente indígena em Palhoça
- Garantir ligação com a malha ferroviária nacional, permitindo o acesso aos portos e aos principais mercados domésticos e internacionais
- Flexibilizar parâmetros para rampas e raios de curvas, considerando operações em double stack e velocidade competitiva
Fonte: FIESC
Articulação | Em 2001 o Governo do Estado projetou o Corredor Ferroviário (Leste-Oeste) em conjunto com a Ferrovia Litorânea, como eixos integrados e complementares. O projeto chegou a ser finalizado, porém logo caiu no esquecimento. Em 2008 iniciou-se a elaboração de mais um projeto para a Litorânea, enquanto em 2013 um novo projeto para a Leste-Oeste começou a ser traçado – como já dito, os estudos foram feitos separadamente. Consumiram mais de R$ 24 milhões e estavam quase engavetados, mas graças às novas propostas defendidas pela FIESC e outras instituições ganharam perspectivas de concretização.
Sistema double stack, viável em SC, permite levar dois contêineres sobre cada vagão - Foto: Shutterstock
A nova força pode vir até mesmo com uma inédita articulação dos três estados do Sul para levar adiante a proposta alternativa apresentada pela FIESC ao Ministério da Infraestrutura, de construir o Complexo Ferroviário Multimodal do Sul do Brasil. Trata-se de uma solução conjunta para viabilizar a transposição da Serra do Mar, que é considerada um grande desafio. Nesse contexto, o Corredor Leste-Oeste de Santa Catarina, que possui estudos de viabilidade mais avançados que projetos dos outros estados e se situa no centro geográfico da região, poderia servir a todo o Sul. Também é possível considerar a extensão da Ferrovia Litorânea até Porto Alegre, dentre outras alternativas existentes. “Este arranjo poderá dotar a Região Sul e o Brasil de uma logística competitiva e de acordo com as práticas de referência mundial”, afirma Mario Cezar de Aguiar.