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Fábricas de acolhimento

Uma a cada cinco pessoas ocupadas no Brasil enfrenta problemas relacionados à saúde mental. Empresas percebem o problema e seus impactos e se estruturam para ajudar os colaboradores a superarem os transtornos - Por Fabrício Marques.

Foto: Shutterstock

Dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) indicam que os transtornos mentais são a terceira maior causa de afastamento do trabalho no País: no ano passado, 209.124 brasileiros tiveram que interromper suas atividades profissionais para tratar doenças como ansiedade e depressão. O patamar é superior aos 200.244 afastamentos registrados no ano anterior. A percepção de que a pandemia tornou mais aguda a incidência de problemas psicológicos e psiquiátricos em trabalhadores levou o SESI/SC a lançar em 2021 um conjunto de soluções para ajudar as empresas a lidarem com a situação, que incluem oferta de atendimento psicológico, workshops e treinamento para gerentes e lideranças, campanhas de conscientização e criação de ferramentas de avaliação e monitoramento do ambiente de trabalho.

O balanço da iniciativa é positivo. Mais de 50 empresas catarinenses de todos os portes estabeleceram parcerias com o SESI/SC e mantêm hoje programas para acolher funcionários com transtornos emocionais e auxiliá-los a superar a crise e se recuperar. O objetivo é reduzir o sofrimento dos colaboradores e prevenir o impacto de afastamentos ou da perda de produtividade na vida das companhias.

“Após a pandemia, as demandas em relação à saúde mental dos trabalhadores aumentaram muito”, reconhece Thiago Braz Novaes, médico do trabalho e responsável técnico do ambulatório de saúde da Docol, fabricante de torneiras e registros para cozinhas e banheiros, cuja sede e planta industrial em Joinville abrigam 1.800 funcionários. O novo Coronavírus, ele explica, desestabilizou os indivíduos de múltiplas maneiras. “Além dos efeitos do isolamento social, a redução da atividade econômica na pandemia levou muita gente a ter problemas financeiros. Outras pessoas tiveram Covid e enfrentaram sequelas prolongadas da doença ou perderam pessoas próximas. Percebemos um volume maior de queixas dos nossos funcionários, como crises de ansiedade, estresse e problemas de insônia.”

Docol, de Joinville, criou momento específico de saúde mental para os funcionários - Foto: Divulgação

O trabalho da Docol teve várias frentes. Workshops com a equipe de recursos humanos buscaram sensibilizar gestores e mobilizá-los para detectar sinais de alerta. Um psicólogo do SESI passou a prestar atendimento na empresa duas vezes por semana, fazendo acolhimento, triagem, avaliação e tratamento de trabalhadores com queixas de problemas de saúde mental. “Os funcionários em crise ou em situação vulnerável podem ser identificados e encaminhados para atendimento pelos gestores de suas áreas, por um profissional com foco na atenção primária em saúde e por mim, quando eles passam por consultas ocupacionais”, diz Novaes.

Sempre que fazem os exames periódicos, os empregados da empresa respondem a um questionário de 20 perguntas desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e trazido para a empresa pelo psicólogo do SESI, com o objetivo de rastrear transtornos mentais na equipe e medir a sua gravidade. Mais de 100 pessoas vêm sendo atendidas a cada mês. Em paralelo, um programa de acompanhamento de trabalhadores afastados foi montado com ajuda de estagiários de psicologia do 5º ano da Faculdade Guilherme Guimbala, em Joinville, assim como se organizou uma rede de psicólogos e psiquiatras de referência vinculados ao plano de saúde oferecido pela empresa para dar sequência ao tratamento.

O SESI/SC já era parceiro da empresa em outras iniciativas na área da saúde, como o programa de ginástica laboral. Todos os dias, os funcionários da planta industrial da Docol em Joinville são convocados a parar por 15 minutos para fazer exercícios de mobilidade e alongamento. “De vez em quando tratávamos também de outras questões de saúde, como prevenção de doenças do coração, mas recentemente resolvemos criar, todas as quartas-feiras, um momento específico de saúde mental, em que trabalhamos com nossos colaboradores exercícios de respiração e relaxamento”, explica Thiago Novaes.

Desempenho | Outra companhia que estabeleceu parceria com o SESI catarinense foi a Zen S.A., fabricante de autopeças sediada em Brusque. Há tempos ela planejava criar ações para promover a segurança psicológica e saúde mental em seu clima organizacional. O espaço para melhorar o desempenho nessas áreas havia sido detectado em pesquisa feita pela consultoria Great Place to Work@ (GPTW) – em 2020, a companhia recebeu certificação da consultoria como um ‘Excelente Lugar para Trabalhar’. “Após a pandemia fomos buscar um apoio estruturado com a FIESC, com a qual já temos parceria há muito tempo”, informa Schirlei Knihs Freitas, gerente de Recursos Humanos da Zen. “Vários colaboradores passaram a ter dificuldades. Isso resultava em absenteísmo e até em pessoas que optavam por deixar a empresa. Temos clareza hoje de que, se não desenvolvermos ações para o bem-estar dos profissionais, os que não estão bem não conseguirão trazer o seu melhor.”

Zen, de Brusque: resgate de bemestar, equilíbrio e rendimento no trabalho - Foto: Divulgação

O SESI contribuiu fornecendo metodologia para o treinamento das lideranças da empresa, da presidência aos gerentes. Ao menos um terço dos 900 colaboradores também participou de workshops. “Um dos objetivos é mostrar aos líderes como eles podem detectar problemas de saúde mental de colaboradores e acolhê-los, atuando sempre por meio de diálogo e com empatia, conceitos que sempre fizeram parte da nossa cultura organizacional, e fazendo o encaminhamento adequado”, diz Freitas.

A parceria também contemplou a presença de uma psicóloga do SESI na empresa, com agenda aberta para os colaboradores um dia por semana. Nos últimos oito meses já foram realizados mais de 250 atendimentos. Segundo Freitas, houve vários casos em que o acolhimento e o acompanhamento de trabalhadores que estavam à beira do afastamento conseguiram resgatar seu bem-estar, equilíbrio e rendimento no trabalho. “Fazemos reuniões periódicas para acompanhar cada situação e, a depender da resposta obtida, podemos desdobrar a atenção em novas ações.” Complementarmente, a empresa tem promovido campanhas internas sobre saúde emocional e preparado mensalmente conteúdo sobre estes temas.

Agenda | Há mais de uma década, a OMS previu que a depressão será a principal causa de afastamento do trabalho no planeta no ano de 2030. “Esta temática não é nova no País, que já convive com índices alarmantes de problemas mentais”, diz Fabrizio Machado Pereira, diretor de Educação, Saúde e Tecnologia da FIESC. “O que temos discutido, dentro da agenda de saúde mental das companhias, é que não se deve esperar 2030 para ver se a previsão da OMS vai se confirmar ou não. Já temos um problema grande instalado e é difícil enfrentá-lo, porque ele tem causas multifatoriais. E nem estamos falando de uma doença só, mas de vários transtornos diferentes”, afirma.

De acordo com dados do estudo internacional Carga Global de Morbidade, que tem colaboração de mais de 1.800 pesquisadores de 127 países e é patrocinado pela Fundação Bill e Melinda Gates, a ansiedade é o transtorno mental mais prevalente entre os brasileiros com 20 anos ou mais, com 46,5% dos casos, seguido por depressão (24,4%), transtorno bipolar (7%) e transtorno de déficit de atenção (5,7%). A deterioração da saúde mental tem resultado em um aumento de desfechos trágicos. Conforme a Pesquisa Nacional da Saúde, o número de suicídios no País cresceu de 6.780 em 2000 para 13.835 em 2020 – um patamar de mortalidade superior ao causado pela AIDS (10.666 óbitos naquele ano) e ou pela leucemia (6.738 mortes).

Um estudo recente lançado pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG) transformou em números os impactos econômicos e sociais causados pelos transtornos mentais em trabalhadores. Dados compilados pelo estudo indicam que 20% das pessoas ocupadas no Brasil sofrem problemas relacionados à saúde mental e, em decorrência desses transtornos, perdem o equivalente a 51 dias de vida saudável por ano, que resultam em absenteísmo ou em diminuição da produtividade no trabalho.

A pesquisa mostrou que a redução da capacidade produtiva causada por transtornos mentais gera uma perda no Produto Interno Bruto (PIB) próxima a R$ 180 bilhões por ano – se essas doenças não existissem, o PIB do País poderia ser 2,8% maior do que é. As perdas econômicas vão além. Levando em conta dados de 2019, geraram redução de R$ 166 bilhões nas rendas das famílias e de R$ 26 bilhões na arrecadação do Governo. E são estimativas conservadoras, diz o estudo, já que se acumulam evidências de agravamento da saúde mental após 2019, por conta da pandemia.

“Os resultados apresentados nes­te trabalho reforçam a importância de discutir o tema saúde mental, que gera também impactos negativos para a economia. Considerando os dados de 2019, as perdas econômicas são de grandes proporções”, disse, no lançamento do estudo, em março, João Gabriel Pio, economista-chefe da FIEMG e responsável pela Gerência de Economia e Finanças Empresariais da entidade. “Os problemas de saúde mental atingem diretamente milhões de brasileiros e os efeitos vão além do indivíduo, afetando familiares e pessoas próximas, bem como o restante da sociedade.”

As ações propostas às indústrias pelo SESI catarinense têm focos objetivos. “Não há receita pronta, mas existem caminhos que têm se mostrado bastante promissores, que estamos construindo em conjunto com as empresas”, afirma a psicóloga Daniela Zanatta, business leader de Saúde Mental no Trabalho no SESI/SC, referindo-se a iniciativas como ampliar o atendimento psicológico na empresa, preparar gestores para identificar e acolher funcionários com transtornos, ou coletar continuamente dados sobre as condições emocionais dos trabalhadores e o clima da organização.

Zanatta e Lopes: construção de soluções em conjunto com as empresas - Foto: Filipe Scotti

Indicadores | Um aspecto essencial é a necessidade de gerar indicadores que ajudem a gerenciar a saúde mental no ambiente de trabalho”, diz Sendi Lopes, gerente de Saúde e Segurança na Indústria do SESI e do SENAI, que coordena as ações com as empresas. Ela menciona a máxima do estatístico norte-americano William Deming (1900-1993): “Não se gerencia o que não se mede, não se mede o que não se define, não se define o que não se entende, e não há sucesso no que não se gerencia”. Um dos objetivos do SESI/SC é oferecer às empresas métodos de avaliação cientificamente validados que sejam capazes de apontar como está a saúde mental dentro de cada corporação.

“Se eu conseguir, por exemplo, saber como o problema da depressão atinge uma empresa e comparar a situação com a do Brasil e do mundo, fica mais fácil traçar as estratégias para enfrentar o problema”, afirma. É comum surgirem demandas em grupos específicos. As mulheres, por exemplo, procuram mais ajuda do que os homens – este é um aspecto cultural forte presente também em outras questões de saúde. “Às vezes a gente percebe necessidades específicas, como acolher um grupo após a perda de um colega de trabalho. Há inúmeras situações que podem gerar demandas. É preciso trabalhar estratégias de forma estruturada”, complementa Lopes.

Outro fundamento é trabalhar nas empresas a importância do autocuidado, a fim de que os funcionários saibam monitorar seu estado emocional e procurar apoio antes que suas condições deteriorem. “As pessoas conhecem pouco como gerenciar a própria saúde. Ainda não se fala muito no País sobre a necessidade de avançar no letramento em saúde”, diz Sendi Lopes.

Uma ferramenta que ajuda a fazer o monitoramento é a assistente virtual Cora, desenvolvida pelo SESI e o SENAI durante a pandemia. O trabalhador pode trocar mensagens com a assistente, em um diálogo que parece conversa do WhatsApp, e receber dicas sobre autocuidado. A assistente consegue avaliar as condições dos funcionários e mostrar para a empresa qual é a situação da saúde mental dos colaboradores. A meta do SESI/SC agora é ampliar o número de indústrias parceiras.

“Queremos escalar as iniciativas de promoção de saúde mental no médio prazo”, afirma Daniela Zanatta. Afastamentos por saúde mental costumam ter duração longa, de três meses a um ano, porque os funcionários só procuram ajuda quando a situação já se agravou. “O ideal é enfrentar o problema enquanto ele ainda está em uma fase moderada e pode ser administrado”, diz a executiva.

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