
Empresas familiares que já passaram por transições de geração sabem que um dos grandes desafios do processo é encontrar o meio-termo ideal entre continuidade e transformação. Se por um lado é natural que a nova geração traga ideias diferentes, é esperado também que os antecessores defendam um certo nível de conservadorismo no ritmo e na abrangência das mudanças.
Trata-se de um conflito universal em empresas familiares, conforme concluiu recentemente o PwC Global Family Business Survey. Enquanto 74% dos herdeiros afirmaram ter a expectativa de mudar significativamente o modelo de negócio, apenas 35% dos representantes da geração anterior disseram estar convictos de que os sucessores estão prontos para liderar. Dos 2.043 entrevistados ao redor do mundo, 22% afirmaram que as divergências familiares são o maior desafio para a construção da confiança com todos os stakeholders. Esse índice foi ainda maior – 26% – na amostragem brasileira do estudo.
“O choque entre tradição e inovação é um dos principais paradoxos das empresas familiares. São duas forças supostamente antagônicas, mas que podem se tornar complementares”, afirma Patrice Gaidzinski, curadora do Executive Development Program (EDP) da Academia FIESC de Negócios, que trata de sucessão e transformação da família empresária com novas turmas formadas semestralmente. “A chave é compreender onde está a complementariedade”, acrescenta.
Para que a sucessão não se transforme em um cabo de guerra, a geração que está passando o bastão precisa ter em mente que fórmulas que deram certo não necessariamente continuarão trazendo bons resultados. Já a geração que está recebendo o bastão deve se preocupar em honrar a história que conduziu a empresa até ali.
“Há um caminho do meio que precisa ser encontrado”, ressalta Patrice. Esse consenso, observa a especialista, não surge por acaso: resulta da consolidação do processo de governança corporativa, que estabelece diretrizes estratégicas para o futuro da empresa. “Isso implica considerar as expectativas e as necessidades de três subsistemas que existem em paralelo: família, propriedade e gestão.”
Transição gradual
Às vésperas de completar 60 anos de operação em Indaial, a Metalúrgica Fey (pronuncia-se “Fai”) vem passando por ajustes em sua estrutura de gestão. A liderança estava sendo exercida pelos quatro netos dos fundadores, sem que houvesse um diretor principal, mas recentemente dois deles passaram a compartilhar os atributos de CEO: Ricardo Fey Neto como vice-presidente de Operações e Fernando Fey como vice-presidente de Administração e Finanças.
Trata-se de mais um passo no processo gradual de sucessão de Adolfo e Bertoldo Fey, os irmãos que levaram adiante o negócio criado pelo pai, Ricardo Fey. Em 1966, Ricardo, que atuava como agricultor, vendeu tudo o que tinha e usou o dinheiro para comprar uma pequena fábrica de porcas que estava com as atividades paralisadas. A ideia era ter um negócio familiar para que os dois filhos pudessem trabalhar com ele. Poucos meses depois de adquirir a fábrica, no entanto, Ricardo sofreu um AVC e os filhos, que tinham pouco mais de 20 anos, precisaram assumir o comando.
A empresa, que no início fabricava apenas dois tipos de porcas, cresceu rapidamente. Hoje, com capacidade instalada de 3 mil toneladas mensais, produz uma grande variedade de porcas e parafusos, além de acessórios para tubos e mangueiras, grampos de molas e pinos de centro, peças para motocicletas, tratores e automóveis leves e pesados. São 800 funcionários, com faturamento de R$ 505 milhões no ano passado.

Adolfo e Bertoldo atuavam diariamente na empresa até a pandemia, quando se viram diante da necessidade de afastamento. Isso consolidou a passagem de bastão para os sucessores. Embora uma estrutura de governança corporativa venha sendo desenhada há mais de dez anos, com apoio de instituições como o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) e a FIESC, a empresa ainda não criou um Conselho de Administração formal, com a participação de conselheiros externos.
“Meu pai e meu tio resistem a essa ideia, alegando que não é necessário ter gente de fora em um negócio que a família conhece tão bem”, conta Claudia Fey Tognotti, filha de Bertoldo, a única mulher entre os quatro netos do fundador, atual coordenadora do Conselho de Família e do Comitê de Sucessão e Cultura Organizacional. “Mas estamos cientes de que é algo em que precisaremos avançar para preparar a chegada da próxima geração.”
Somados, os quatro netos dos fundadores têm atualmente nove filhos – a mais velha está com 20 anos. Essa geração participa desde cedo da programação do Conselho de Família, que promove encontros periódicos para apresentação dos mais diversos aspectos relacionados ao funcionamento da empresa. “Não sabemos se, no futuro, a gestão continuará sendo familiar, mas estamos focados em preparar todos para o papel de sócios, porque sobre isso não há dúvidas”, diz Claudia.
Plano de uma década
Há dez anos, a Urbano Agroindustrial iniciou um plano de sucessão que será concluído, no final de 2025, com o anúncio do novo CEO, que poderá ou não pertencer à família. “Eu e meus irmãos sempre deixamos claro que nossos filhos e nossas filhas deveriam escolher livremente seus caminhos profissionais”, afirma Renato Franzner, o atual CEO, representante da segunda geração. “Por isso podemos afirmar que todo membro da família que está na empresa está por vontade própria.”
A estrutura de gestão passou por transformações relevantes em 2022, quando tomou posse a nova diretoria, composta por quatro membros da terceira geração da família. Naquele momento as diretorias passaram a estar centralizadas na sede, em Jaraguá do Sul – até então, o modelo era de comando distribuído entre os líderes das 19 unidades, instaladas em diferentes estados.
Fundada em 1960 por Urbano Franzner e Alminda Pradi Franzner, a empresa expandiu-se com a participação de seis filhos e a decisão estratégica de estabelecer operações no Rio Grande do Sul, estado que concentra a maior produção de arroz do País. Dorval Franzner, um dos seis irmãos, lembra que as primeiras filiais que foram sendo abertas passaram a ser dirigidas pelos próprios irmãos-sócios – ele, por exemplo, mudou-se para Meleiro (SC). Em seguida, com a expansão, as unidades passaram a ser lideradas por gestores internos que já faziam parte dos quadros da empresa.

Até o final da década de 1990, as filiais operavam como empresas independentes. “A centralização foi um processo longo e complexo, dada a diversidade de situações envolvidas”, recorda Dorval. Agora, com a transição para a terceira geração em fase conclusiva, os representantes da segunda geração deixam integralmente os cargos de gestão e passam a atuar nos Conselhos, consolidando a separação entre papéis de propriedade, governança e gestão.
A terceira geração tem 17 integrantes, dos quais dez trabalham na empresa. Como o crescimento tende a ser geométrico, a quarta geração já soma 28 bisnetos do fundador, sendo que o mais velho está com 17 anos. “Ver esse ciclo de sucessão sendo concluído é uma grande satisfação para todos os envolvidos e um grande passo para o futuro da empresa”, conta Andressa Franzner, presidente do Conselho de Família – ela é neta do fundador, sobrinha do atual CEO e filha de Dorval.
Em 2023, Andressa e mais três primas de núcleos familiares diferentes participaram do EDP da FIESC. “Foi uma experiência que abriu várias portas, tanto em termos de planos de ação que montamos a partir dali quanto de contatos com outras empresas familiares”, afirma. Hoje, com quase 2 mil funcionários, a Urbano produz 60 mil toneladas de alimentos por mês e tem mais de 100 produtos no portfólio, derivados do beneficiamento de arroz, feijão e cereais.

Tradição com inovação
A Duas Rodas, fabricante de aromas para a indústria de alimentos sediada em Jaraguá do Sul, completará no próximo dia 1º de dezembro um século de existência com a convicção de estar pronta para um novo ciclo de crescimento. Essa sensação se origina, em grande parte, da conclusão do processo sucessório: Rosemeri Francener chegou ao cargo de CEO em substituição a Leonardo Fausto Zipf, representante da terceira geração que esteve no comando executivo por quase três décadas.
A empresa foi fundada em 1925 pelo casal Rudolph e Hildegard Hufenüssler, recém-chegado da Alemanha. Seus dois filhos, Dietrich e Rodolfo, assumiram o comando nos anos 1950. No final da década de 1990, escolheram Leonardo – genro de Rodolfo – para liderar a organização. Já Rosemeri não é integrante da família fundadora, mas trabalha na empresa desde 2001, quando tinha 20 anos. “É muito bom que tenhamos conseguido uma pessoa de dentro da organização. Nós sobrevivemos 100 anos porque conseguimos olhar as pessoas, desenvolver e treinar os talentos internos e fazer o nosso plano de sucessão”, diz Leonardo.
A nova CEO ingressou como assistente comercial, passou para a administração de vendas e chegou à controladoria, onde conheceu a fundo os processos e as estratégias da empresa. Em 2015, quando a Duas Rodas criou uma diretoria de negócios internacionais, ela foi escolhida para o cargo. Em apenas sete anos, as receitas da área cresceram exponencialmente, sucesso que pavimentou seu caminho como futura CEO.

Não foi um processo simples, no entanto. Envolveu a avaliação de 30 candidatos internos e externos ao longo de três anos, com base nas diretrizes estabelecidas pelo Conselho de Administração. Em paralelo, os seis diretores também foram substituídos, por aposentadoria – cinco dos sucessores são “prata da casa” e apenas um foi recrutado no mercado.
“Acredito que esse processo de sucessão tenha passado várias mensagens. A principal é de continuidade: ficou claro que a Duas Rodas quer continuar sendo a Duas Rodas”, afirma Rosemeri. Ela considera que está recebendo a empresa no melhor momento em toda a história centenária. “Tem uma governança completamente implementada, um conselho de administração ativo, participativo e apaixonado pelo negócio e um time de gestão extremamente preparado. Nossos diretores, gerentes e todos os talentos estão prontos para os desafios que vamos ter no futuro.”
A arrojada meta apresentada à nova CEO é mais do que dobrar o faturamento nos próximos quatro anos, chegando a R$ 4 bilhões. Entre as estratégias centrais estão intensificar a presença internacional e continuar destinando 5% da receita a inovações. Como resultado desses investimentos, 18,4% da receita do ano passado veio de produtos desenvolvidos ou atualizados nos últimos três anos. “Mais do que matérias-primas, nós vendemos tecnologia”, diz Leonardo.
