Maior produtor de carne suína do Brasil, Santa Catarina concentra 28% do rebanho nacional, com um efetivo de mais de 8 milhões de cabeças. Os benefícios socioeconômicos da atividade são extensos para o Estado, que também é o maior exportador do produto. A criação de suínos, porém, sempre trouxe desafios ambientais, principalmente por causa dos dejetos, de alto potencial poluidor e geradores de gases de efeito estufa. O licenciamento ambiental das propriedades rurais depende do tratamento com o uso de esterqueiras e a conversão dos dejetos em fertilizantes, por exemplo, solução que nem sempre é a mais adequada do ponto de vista econômico, nem a mais eficiente quando se tem em conta a pegada de carbono da atividade. Por outro lado, os dejetos possuem enorme potencial, pois podem ser fonte de biocombustíveis com diversas aplicações.
Tudo considerado, a suinocultura era a oportunidade ideal para se tornar objeto do primeiro programa do Hub de Descarbonização FIESC, uma iniciativa que envolve os Institutos SENAI de Inovação e Tecnologia e visa acelerar a descarbonização das cadeias de produção por meio da mobilização de setores produtivos, governo, universidades, centros de pesquisa e outras organizações (leia o box da p. 28). Foi nesse contexto que o programa Biogás SC foi criado com uma meta ousada. “O objetivo é que, em até 10 anos, 100% dos dejetos suínos produzidos no Estado sejam utilizados para gerar biogás, com resultados positivos para todos os envolvidos”, afirma Fabrizio Machado Pereira, diretor de Educação, Saúde e Tecnologia da FIESC.
O potencial de geração existente é relevante: os cálculos são de que há capacidade para produzir quase duas vezes mais biometano do que o total de gás natural consumido atualmente em Santa Catarina – o biometano é um dos produtos obtidos a partir do biogás e possui características similares ao gás natural. A demanda também é crescente. Há cerca de 900 usinas de biogás em operação atualmente no Brasil, de acordo com a CIBiogás, que suprem apenas 3,3% do potencial existente no País. O desafio do programa é fazer com que a atividade se torne um negócio atraente, rentável e seguro.
Crédito | O programa busca a viabilidade técnica e econômica por meio, por exemplo, da melhoria do ambiente de negócios, com a criação de regras mais claras e estimuladoras, além da busca por incentivos, o que está sendo construído junto ao setor público. A abertura de linhas de crédito por bancos de fomento e a facilitação das garantias também estão no foco, da mesma forma que o apoio ao desenvolvimento de tecnologias e a garantia de compra e distribuição dos produtos gerados, dentre outras várias frentes de articulação. É para amarrar todas essas pontas que integram o programa organizações como UFSC, BRDE, Celesc, SCGás, Acate, Governo do Estado, Embrapa Suínos e Aves, ABiogás, CIBiogás, Fapesc e Sindicarne, dentre outras, numa mobilização em torno da viabilidade do projeto. “O maior ativo da FIESC é a capacidade de reunir todos os atores em torno de uma mesa para perseguir objetivos comuns e acelerar a descarbonização, além de oferecer capacitação e o desenvolvimento de tecnologias e inovações por meio do SENAI”, diz Mario Cezar de Aguiar, presidente da FIESC.
As propriedades rurais que estão no foco do programa são aquelas sujeitas a licenciamento ambiental, o que perfaz um total de cerca de 8 mil propriedades dedicadas à suinocultura. Desse universo, somente pouco mais de 1% já possui biodigestores, os sistemas capazes de produzir biogás por meio dos dejetos. Despertar o interesse e convencer todos os produtores rurais é um dos desafios do programa. As agroindústrias, que são cobradas pela redução de emissões não apenas de suas atividades diretas, mas também as de seus fornecedores, estão engajadas. “Temos todo o interesse não só em fomentar a descarbonização das propriedades rurais, como também eventualmente nos tornarmos fornecedores de serviços e soluções”, afirma José Antonio Ribas Junior, presidente do Sindicato da Indústria de Carnes e Derivados de Santa Catarina (Sindicarne).
Ribas Junior, que é diretor executivo de Agropecuária da JBS Seara, destaca que a companhia tem projetos-piloto de usinas de biometano em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, que compreendem o aproveitamento do combustível em caminhões de entrega de ração e de movimentação de suínos e aves. “Dessa forma criamos economia circular com a indústria sendo o ponto focal, tirando o problema do produtor e gerando uma logística de baixo carbono. Este é apenas um exemplo de arranjo que pode ser feito”, diz Ribas. “O setor está maduro e aberto para o desafio da descarbonização, mas é preciso criar uma jornada de conhecimento para que não sejam feitos investimentos equivocados ou se criem custos desnecessários”, completa.
A história do setor em Santa Catarina dá razão às preocupações. A instalação de biodigestores para a produção de biogás não é uma novidade: vêm dos anos 1980 as primeiras iniciativas de suinocultores do Estado. Diversos produtores aderiram a uma ‘onda’ que se disseminou pelo setor, porém sem que houvesse planejamento, mensuração de potencial, planos de negócios personalizados ou mesmo capacitação local para a operação e manutenção dos equipamentos. “Várias iniciativas da época não deram certo, o que criou um estigma negativo para esse tipo de tecnologia”, afirma Charles Leber, especialista do Instituto SENAI de Tecnologia Ambiental.
Nesse sentido, uma boa contribuição para o programa é oferecida pela Tupy, de Joinville. Mais conhecida pela fabricação de blocos e cabeçotes de motores para veículos pesados, a companhia possui também uma unidade de negócios voltada à descarbonização, e por conta disso é uma das organizações pioneiras da criação do Hub. Por meio de sua subsidiária MWM, fabricante de motores e geradores de energia, a companhia pode se tornar uma das principais fornecedoras de soluções para o programa Biogás SC. Um projeto já em andamento no Paraná, em parceria com uma cooperativa agrícola, dá uma boa ideia do que poderá ser realizado junto aos produtores de suínos de Santa Catarina.
Conversão | O projeto envolve a construção de uma usina de biogás na região de Toledo (PR), mas o trabalho inclui até o recolhimento de dejetos nas propriedades e o transporte até a central. O biogás produzido em biodigestores será convertido em energia elétrica por meio dos geradores da marca, e também transformado em biometano com a retirada do dióxido de carbono do gás original. A energia gerada beneficiará os próprios produtores, enquanto o combustível será utilizado na frota de caminhões da cooperativa. A conversão dos motores a diesel para gás também é feita pela MWM.
“É um modelo de negócios que tem sustentabilidade financeira tanto para nós, fornecedores, quanto para os produtores, que traz eficiência e benefícios para a cadeia como um todo”, diz Fábio Luiz Caramori, gerente de Inovação e Desenvolvimento de Negócios da Tupy. Neste caso trata-se de uma solução completa, que contempla a mitigação de emissões de gases do efeito estufa associada à redução de custos operacionais e outros ganhos. As soluções demandadas, entretanto, são diferentes para cada empresa ou grupo de produtores, e o correto dimensionamento de cada projeto é uma das principais preocupações do programa.
Há casos, por exemplo, em que uma única propriedade, de grande porte, possui geração de resíduos suficiente para abastecer sozinha uma pequena usina. Em outras situações, na maioria dos casos, as propriedades rurais são pequenas e não comportam soluções individuais. Nesses casos a solução pode ser agrupar regionalmente suinocultores capazes de sustentar uma central – este processo é chamado de clusterização – que poderá ser operada por uma sociedade de produtores ou por um fornecedor como a MWM, por exemplo, dentre outras soluções possíveis. “Estamos desenvolvendo uma plataforma capaz de gerar planos de negócios personalizados e atualizados, além de possuir uma série de outras funcionalidades”, diz Charles Leber.
A Plataforma de Gestão de Dejetos Suínos deverá ser capaz de mensurar o potencial de negócios, apontar oportunidades de clusterização, desenvolver planos de negócios, verificar as tecnologias disponíveis para cada situação, facilitar o acesso a fontes de financiamento e, não menos importante, apoiar a criação de uma rede de assistência técnica, capacitação e manutenção. A plataforma será a essência do programa, e terá um comitê gestor formado por representantes das organizações que o integram – agroindústria, financiadores, governo, entidades de educação e extensão e outras. É essa estrutura que deverá colocar de pé e dar sustentabilidade ao novo negócio de energia limpa e renovável que está nascendo em Santa Catarina.
Economia circular no campo
Como os dejetos suínos são neutralizados e convertidos em energia
Para que se tornem biocombustíveis, os dejetos suínos devem primeiramente passar por um processo de decomposição por microrganismos. É a biodigestão, realizada em equipamentos chamados biodigestores. É dentro deles que o biogás, um composto gasoso formado principalmente por metano e dióxido de carbono, é produzido. Além do gás, restam do processo sólidos e líquidos, que podem ser utilizados como adubos e fertilizantes biológicos. Esses produtos são importantes para garantir a sustentabilidade ambiental e econômica do processo.
O biogás, por sua vez, pode ser convertido em eletricidade se utilizado como combustível de geradores a gás. A energia produzida é aproveitada nas propriedades rurais ou aplicada na rede elétrica como geração distribuída. O biogás também pode ser purificado, com a retirada do dióxido de carbono, e se obtém o biometano. É um produto com características similares ao gás natural e que pode até mesmo ser misturado e distribuído pelas redes convencionais. Também é usado diretamente como combustível veicular, em substituição ao gás natural ou óleo diesel. Com todas essas aplicações fecha-se o processo de economia circular na cadeia da suinocultura.
Mobilização pela descarbonização
Hub liderado pela FIESC envolve setores produtivos, governo, universidades e centros de pesquisa.
Descarbonizar o setor produtivo é necessidade e ao mesmo tempo oportunidade de múltiplas camadas. Envolve a reação às mudanças climáticas, o cumprimento de compromissos de países e organizações, o atendimento a novas normas, gera oportunidades de inovação e é fator de competitividade. A percepção geral é de que todas as organizações falam em descarbonização, porém limitam-se a olhar para os próprios processos e atuam pouco de forma integrada com as cadeias em que estão inseridas. “Estava faltando um espaço onde o tema da descarbonização fosse o protagonista, e provocamos a FIESC nesse sentido”, conta Fábio Luiz Caramori, gerente de Inovação e Desenvolvimento de Negócios da Tupy.
O Hub de Descarbonização, criado neste ano pela FIESC, contempla justamente essa demanda ao articular setores empresariais, poder público, universidades, centros de pesquisas e outras organizações para encontrar soluções visando à aceleração da descarbonização em Santa Catarina. “Queremos liderar o processo de transição para uma economia mais sustentável”, afirma Maurício Cappra Pauletti, gerente executivo de Inovação e Tecnologia do SENAI/SC.
Com foco na descarbonização de arranjos produtivos, o Hub atua na formação de pessoas, em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias para uso em escala e novos modelos de negócios, dentre outras frentes. Também está mapeando a emissão de gases de efeito estufa dos principais setores industriais de Santa Catarina e identificando o potencial de geração de energias renováveis para nortear investimentos, além de avaliar o potencial de geração de créditos de carbono no Estado. Vários programas estão em desenvolvimento, a exemplo do Biogás SC. “Teremos frentes de trabalho para as cadeias produtivas do carvão, cerâmica, plástico e têxtil, entre outras, permitindo que a descarbonização alcance diversos segmentos”, destaca Pauletti.