12 mil Consumidores de SC que podem migrar para o mercado livre - Foto: Shutterstock
A abertura do mercado livre de energia para todos os consumidores de média e alta tensão – na prática quem paga contas de luz de cerca de R$ 10 mil para cima – deve ser particularmente relevante para a indústria de Santa Catarina. As novas regras permitem que as empresas saiam do chamado mercado regulado ou cativo, atendido pelas distribuidoras, e passem a negociar livremente a energia que consomem. A novidade, que passou a vigorar no começo do ano, se aplica a mais de 100 mil consumidores em todo o Brasil. De acordo com a Celesc, distribuidora de energia em Santa Catarina, por volta de 12 mil empresas do Estado podem migrar.
Principal apelo para a adesão, a diferença de preços entre contratos no mercado livre e as tarifas do regulado pode chegar a 35%, considerando os baixos preços atuais por conta da elevada disponibilidade hídrica e o ritmo lento da economia. Entretanto, projeções mais conservadoras – e realistas – apontam diferenças entre 15% e 20%: este é o número com que trabalha a Confederação Nacional da Indústria (CNI). Faz mais sentido quando se pensa no longo prazo e nas flutuações de preços no tempo. Desde que o mercado livre de energia passou a funcionar no Brasil, há 27 anos, a economia média de quem aderiu foi de pouco mais de 20%, conforme levantamento da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel).
O mercado livre era até então acessível somente aos grandes consumidores (acima de 500 kW), na prática grandes indústrias intensivas em energia, como WEG e ArcelorMittal, ou redes varejistas do porte do Grupo Pereira, dono do Fort Atacadista. Com as mudanças, pequenas indústrias como padarias poderão negociar contratos de energia diretamente com os varejistas, nova categoria de comercializadores de energia criada para atuar no mercado. Segundo a CNI, 40 mil empresas do setor industrial poderão trocar de fornecedor.
“A energia é a matéria-prima mais cara da panificação”, afirma Roseli Steiner Hang, dirigente do Sindicato da Indústria de Panificação e Confeitaria de Joinville. Hang, que é proprietária da Confeitaria Semente da Terra, investiu há dois anos em geração solar fotovoltaica para reduzir os custos com energia, que chegavam a R$ 20 mil mensais nos meses mais quentes do ano. Esta não é a realidade da maior parte do setor. De acordo com a CNI, 70% das pequenas empresas industriais ainda obtêm energia exclusivamente no mercado cativo, e elas têm enfrentado uma escalada de preços.
Oportunidade: energia é matéria-prima mais cara do setor de panificação - Foto: Shutterstock
Encargos | Entre 2013 e 2023 o preço da energia propriamente dita subiu 9% acima da inflação, conforme estudo do Fórum das Associações do Setor Elétrico (FASE), ao passo que a conta de luz para residências e pequenas e médias empresas sofreu elevação de 35%, devido ao acúmulo de encargos como subsídios para projetos de energias renováveis e ajuda às distribuidoras durante a pandemia. A migração para o mercado livre é uma forma de diminuir ou zerar a dependência do mercado regulado sem a necessidade, por exemplo, de investimento em estruturas próprias de geração distribuída. “Temos recebido no sindicato várias empresas de energia apresentando soluções para o setor de panificação. É uma boa oportunidade para redução de custos”, avalia Hang.
As vantagens apontadas pelos varejistas não se resumem ao preço, pois os consumidores podem negociar livremente as condições das contratações, incluindo prazos e indexadores, por exemplo. Nesse contexto, a previsibilidade é um dos fatores mais relevantes de quem adquire energia no mercado livre, desde que se façam contratos de médio ou longo prazo capazes de travar o preço por um período relevante. E que de alguma forma as empresas negociem com os fornecedores mecanismos que atenuem oscilações bruscas de preços. “Hoje a energia está barata no mercado livre, mas não se sabe quanto custará no futuro. O risco das empresas é não obter dos fornecedores compromisso com o fornecimento de longo prazo”, diz Tarcísio Rosa, presidente da Celesc.
Rosa, da Celesc: estratégia para reter clientes que deixarão a distribuidora - Foto: Divulgação
Geradora | As distribuidoras inevitavelmente perderão clientes com a migração para o mercado livre. Estima-se que a abertura poderá fazer com que cerca de 10% do consumo total de energia do País deixe o ambiente regulado. A Celesc, porém, se organiza para segurar os clientes. Em janeiro a empresa se habilitou junto à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) como comercializadora varejista para poder atender a consumidores antes cativos no ambiente de negociação livre. As empresas que desejam deixar o ambiente regulado têm que formalizar a saída junto à distribuidora. Quando isso ocorrer a Celesc espera poder retê-las com boas ofertas de energia por meio de seu braço varejista. “O objetivo é reter até 70% dos clientes. Eles já conhecem a empresa, que tem credibilidade, e terão segurança em permanecer conosco”, avalia Rosa.
De posse dessa vantagem competitiva a Celesc não pretende adotar uma estratégia agressiva de preços, mas sim oferecer boas condições de negociação nas renovações de contrato, por exemplo. A empresa é também uma geradora, com 119 MW de capacidade instalada e novos projetos entrando, e é essa energia que será destinada ao mercado varejista. Como produz a própria energia, poderá evitar repasses de preços aos clientes na hora de renovar contratos em caso de elevações excessivas nas cotações do mercado livre, o que é mais difícil para as comercializadoras que não possuem geração própria e têm que adquirir o produto no mercado.
Além disso, a Celesc se adiantou e no ano passado firmou acordo com o Governo do Estado para passar a fornecer energia a determinados órgãos, como as secretarias de Educação e Saúde, por meio do mercado varejista. Com a diferença de preços entre os dois ambientes de contratação espera-se que o Estado economize R$ 70 milhões em cinco anos.
Em janeiro havia mais de 100 comercializadoras varejistas habilitadas e outras 50 em processo de habilitação, o que dá uma dimensão da corrida para se estabelecer em um novo mercado estimado pela CCEE em 20 mil a 24 mil novos consumidores aderindo somente neste ano em todo o Brasil. Além de um grande número de novos entrantes, comercializadoras que já estão há muito tempo no mercado livre atendendo grandes empresas se organizam para atuar no varejo. É o caso da catarinense RBE, empresa do Grupo H. Carlos Schneider (HCS), fundada em 2011 para oferecer serviços de consultoria, venda e gestão energética.
Agora a RBE desenvolveu uma plataforma para atender as pequenas empresas, pois os consumidores precisam ser representados por um comercializador varejista perante a CCEE, situação diferente do que ocorre com os grandes consumidores, que se credenciam diretamente junto à Câmara. Além da representação, a varejista oferece suporte aos clientes para a migração, assessora as operações e busca as melhores ofertas de energia no mercado de acordo com o perfil de consumo e as necessidades das empresas.
Um dos trunfos da RBE para atrair clientes é a sinergia dentro do Grupo HCS, que controla a Ciser, maior fabricante de fixadores (parafusos) da América Latina. Com uma enorme gama de clientes industriais e comerciais e relacionamentos de longa data, sua carteira pode ser uma porta de entrada para a comercializadora. “Trabalhar a base de clientes da Ciser é um adicional estratégico, mas estamos arduamente atuando para levar o nome da RBE para todo o Brasil”, afirma Rafael Stuchi, diretor de Comercialização da RBE. “Temos como meta triplicar nossa carteira de clientes em dois anos, considerando varejo e atacado, superando as 400 unidades consumidoras sob nossa gestão.”
Stuchi, da RBE: atuação nacional e meta de triplicar carteira de clientes em dois anos - Foto: Divulgação
As maiores empresas do setor elétrico, que geram e comercializam grandes volumes de energia, também estão entre as que pretendem ganhar boas fatias do mercado varejista. A Engie, maior geradora privada e comercializadora do País, já atende no mercado livre grandes empresas como WEG, Pamplona e Malwee. Agora investe na estrutura comercial para o ganho de escala que será exigido com a abertura do mercado, ampliando as equipes próprias e formando uma rede de representantes habilitados em todo o País. “Nos últimos anos planejamos e nos preparamos para esse momento de expansão do mercado”, diz Gabriel Mann, diretor de Comercialização da Engie Brasil Energia.
Mann, da Engie: digitalização para obter ganhos de escala na comercialização - Foto: Divulgação
Uma das consequências da abertura do mercado é o desenvolvimento tecnológico do setor. A Engie aposta na digitalização para obter ganhos de escala e aumentar a eficiência operacional sem aumentar custos, com o intuito de preservar boas margens na comercialização de varejo, e também no desenvolvimento de soluções para o novo perfil de clientes. Um dos produtos citados por Mann é o E-conomiza, que facilita a migração de pequenas e médias empresas por oferecer economia garantida e contratos simplificados. A plataforma Energy Place funciona como um e-commerce para compra de energia de forma 100% digital, e também permite interação dos clientes com especialistas da empresa e fornece informações que ajudam a administração dos contratos.
O acesso garantido a fontes renováveis – o que não acontece no ambiente regulado – é outra vantagem oferecida por operadores do mercado livre. Dentre outros produtos a Engie oferece contratos de fornecimento de energia renovável com garantia de origem de suas usinas hidráulicas, solares ou eólicas, o que permite ao cliente zerar as emissões do consumo de eletricidade. “A abertura do mercado livre é muito positiva para a sociedade, pois aumenta a competitividade das empresas e as oportunidades para a transição energética”, afirma Mann.
A abertura do mercado para as pequenas empresas não é o final do processo de liberalização do setor. Os passos seguintes serão o acesso para todas as empresas, mesmo as que estão ligadas à baixa tensão, e também aos consumidores residenciais, o que poderá acontecer antes ainda do final da década. Há quem preveja com isso uma revolução equivalente à que ocorreu na telefonia após as privatizações, com forte impulsionamento de desenvolvimento tecnológico e redução radical de preços. O Brasil tem 90 milhões de consumidores, e 99,9% deles ainda não têm acesso ao mercado livre. A forma como a atual etapa da liberalização vai evoluir poderá dar sinais mais concretos sobre o futuro do setor.