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A complexidade do vinho catarinense

Empresas do setor investiram alto para produzir vinhos finos de alta qualidade, mas enfrentam gargalos logísticos, alta carga tributária, concorrência desleal e até preconceito - Por Leo Laps

Foto: Shutterstock

Com pouco mais de 30 anos de história, a indústria dos vinhos finos de altitude de Santa Catarina vive um momento de otimismo. A pandemia da Covid-19 triplicou o consumo da bebida no País, hoje na casa dos 2,5 litros per capita ao ano, e as restrições e aumentos no custo dos fretes internacionais abriram espaço para os rótulos brasileiros, que na época chegaram a conquistar 20% do mercado nacional. Muitas vinícolas da Serra Catarinense e do Vale do Contestado estão apostando com força no enoturismo, elemento essencial para o equilíbrio financeiro dessas empresas, e em aumentos de produtividade e enxugamento de custos – sempre “sem abrir mão da qualidade”, discurso tão arraigado que parece estar acima até mesmo de uma maior lucratividade.

Na região produtora de vinhos finos de altitude, os vinhedos somam 400 hectares (mais da metade deles em São Joaquim) e ficam acima dos 900 metros, chegando a 1,4 mil metros em alguns locais. O clima seco, com alta incidência de luz solar e noites frias e até geladas, aliado ao solo basáltico, faz com que o cultivo de uvas da espécie Vitis vinifera resulte em uma colheita tardia de frutos saudáveis e de alta qualidade. Eles geram vinhos complexos, com aromas e sabores que já conquistaram dezenas de premiações nacionais e internacionais.

De acordo com o jornalista e especialista em enogastronomia João Lombardo, autor de três livros sobre vinhos, cervejas e gastronomia catarinense, as altitudes de Santa Catarina inauguram um novo terroir no cenário vitivinícola nacional. Algumas variedades já estão consolidadas, como a Sauvignon Blanc e a Chardonnay. “Ainda há muito o que se explorar e descobrir ali”, diz Lombardo. “Estão entrando em cena, com muita força, as uvas italianas. A Montepulciano e Sangiovese estão gerando vinhos tintos com muita qualidade. E há novos experimentos com castas como a Malbec. É uma vitivinicultura em construção”, afirma.

Altitudes de Santa Catarina inauguram novo terroir - Foto: Leo Laps

A confirmação do potencial da região foi corroborada ao longo dos anos 1990 por um estudo aprofundado que envolveu Epagri, UFSC e Sebrae, e os primeiros vinhedos foram semeados na região na virada do milênio. Em 2021, os vinhos de altitude de Santa Catarina ainda conquistaram junto ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) o selo de Indicação Geográfica, que agrega valor econômico e cultural aos produtos.

Enoturismo | A produção de vinhos finos de altitude de Santa Catarina é de cerca de 1,5 milhão de garrafas. O número é ínfimo quando comparado ao total de vinhos produzidos no Estado, que inclui os vinhos de mesa, que têm baixo custo e alto volume, feitos com uvas da espécie Vitis labrusca, e também as produções com uvas híbridas como a Goethe e a Piwi (veja matérias nesta edição): 35 milhões de litros, contando os espumantes, que colocam Santa Catarina como o segundo maior produtor de vinhos do País. O Rio Grande do Sul, líder nacional, produziu no ano passado 230 milhões de litros. Um quarto deste total foi de vinhos finos e espumantes.

“Na indústria dos vinhos finos, Santa Catarina e Rio Grande do Sul são dois mundos bem distintos”, afirma Abner Zeus Freitas, sócio da Vinícola Thera, em Bom Retiro. “O Rio Grande do Sul encontrou uma vocação para a larga escala no setor, com colheitas automatizadas em uma geografia que permite isso. Aqui, o relevo dificulta, e nossa vocação se voltou para a produção de pequenas quantidades com a melhor qualidade possível”, completa. A quantidade, no entanto, se desenvolve em curva ascendente. A Thera inaugura neste primeiro semestre uma estrutura própria, com capacidade para 300 mil garrafas por ano. É o triplo da produção que, até ano passado, era feita na Villa Francioni, uma das mais famosas vinícolas do Estado, fundada pelo avô de Abner em 2001.

Produtos da Thera - Foto: Divulgação

Com isso a Thera ganha espaço e liberdade suficientes para produzir e ainda terceirizar parte da estrutura. Equipamentos turísticos, com um winebar para mais de 200 pessoas, uma pousada com 18 suítes, salas de degustação e até um condomínio residencial completam o modelo de negócio. “O enoturismo tem um papel extremamente relevante no sucesso da operação. Vendemos metade da nossa produção diretamente para turistas. E os novos atrativos vão permitir um ganho de escala”, avalia Abner.

A venda de pelo menos um terço a até metade da produção in loco é uma característica comum entre as vinícolas da Serra Catarinense. Este é um aspecto universal do negócio, que se repete em regiões vitivinicultoras famosas como Mendoza, na Argentina, o Sul da Califórnia, nos Estados Unidos, e Bordeaux e Borgonha, na França. Tanto que projetos semelhantes ao da Thera estão em andamento ou nos planos de outras empresas da região. Na Quinta da Neve, vinícola pioneira na região que foi adquirida em 2021 por um grupo de sócios de Balneário Camboriú, um lote residencial dentro da propriedade já está em fase de aprovação na prefeitura de São Joaquim. Em seguida, deve ser inaugurado um hotel, um winebar e um restaurante voltado para a enogastronomia.

Instalações da Thera: winebar e pousada com 18 suítes - Foto: Divulgação

Hábitos | Projeto semelhante está na mesa do empresário Vicente Donini, acionista da Marisol, que em 2015 adquiriu 52 hectares em São Joaquim e fundou a Vinícola Vivalti. Com investimento inicial de R$ 12 milhões, o negócio já atingiu o ponto de equilíbrio, segundo o fundador. Mas, mesmo crescendo dois dígitos ao ano, ainda há dificuldade para fazer caixa para investimentos, tanto que os planos para aplicar em estruturas de receptivo turístico estão represados.

O foco atual está na implementação e consolidação de 16 hectares de vinhedos, que devem elevar a produção anual de 50 mil para 120 mil garrafas. “Difícil, nesta atividade, são somente os primeiros 100 anos”, brinca Donini, parafraseando a baronesa Philippine de Rothschild, que foi proprietária de vinícolas na região de Bordeaux, na França. “Mas há mercado para crescer. Existe um longo processo de derrubada do estigma dos vinhos nacionais, muitas vezes desprezados diante dos importados. Felizmente o brasileiro está mudando os hábitos”, opina Donini. “Do ponto de vista operacional, se você precisa de um retorno de investimento rápido, este não é o negócio certo”, avisa o experiente empreendedor.

Donini: com novos vinhedos produção subirá a 120 mil garrafas por ano - Foto: Divulgação

O vinho de altitude é hoje o principal produto com intenção de consumo por turistas na região, conforme pesquisa de 2023 da Fecomércio, à frente do queijo colonial e do pinhão. No entanto, a luta por melhorias nas vias de acesso às propriedades é uma constante no trabalho do presidente da Associação Vinhos de Altitude, Diego Censi. “Estamos criando cada vez mais estruturas de receptivo, equipamentos turísticos e atrações. A contrapartida que esperamos do poder público são os acessos. Quando tivermos melhores estradas vamos atrair novos investimentos”, aposta Censi, que desde 2018 é proprietário da Pericó, vinícola fundada pelo empresário Wander Weege há duas décadas em São Joaquim. A Pericó teve que paralisar o agendamento de visitas devido ao estado das estradas com as chuvas que atingiram o Estado no segundo semestre do ano passado. “Perdemos pelo menos 20% do faturamento previsto para 2023”, revela.

Um convênio assinado com o Governo Estadual em 2012 previa o asfaltamento das três rotas do vinho em São Joaquim. As obras pararam na metade e as chuvas transformaram vários trechos em lamaçais. Até agora, apenas um trecho foi completado. No começo de 2024 a prefeitura conseguiu autorização para fazer melhorias nas outras duas rotas. A expectativa de Censi é que até o começo das festividades de vindima – a colheita de uva que vai de março a abril na região – a situação esteja ao menos amenizada para garantir o fluxo seguro de turistas. São esperadas mais de 40 mil pessoas durante o festival Arte & Vinho, que ocorre em São Joaquim no começo de março, e também nos tours para 19 vinícolas da região.

Censi: se estradas de acesso melhorarem setor fará novos investimentos - Foto: Divulgação

A elevada tributação, que chega a 43% do valor do produto ao longo da cadeia produtiva, é outro gargalo da indústria de vinhos. Por isso é grande no setor a torcida pela aprovação de um projeto de lei do senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), que pretende definir a bebida como um alimento natural, a exemplo do que acontece em países como Uruguai e na União Europeia. A mudança traria, provavelmente, uma reconfiguração tributária e um estímulo para investimentos no setor, que além de não conseguir competir com produtos importados lida com o preconceito do consumidor perante os rótulos nacionais.

“O vinho catarinense, bem como o de outros estados, já nasce sem ser competitivo. Ele tem qualidade, mas não consegue competir no preço com a maioria dos importados”, afirma o presidente do Sindicato da Indústria do Vinho de Santa Catarina (Sindivinho/SC), Guilherme Grando. “Não temos a cultura do vinho nacional, temos uma das cargas tributárias mais altas do mundo e ainda lidamos com o descaminho: um alto volume de contrabandos e falsificações”, enumera Grando.

Fontes: Epagri (2019) e Sindivinho

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