Um projeto que mobilizou quatro empresas e quatro centros de pesquisa tecnológica desenvolveu um sistema de inteligência artificial (IA) capaz de aperfeiçoar o controle de qualidade de linhas de produção e inspecionar peças fabricadas, sem que seus algoritmos precisem ser treinados com um grande volume de fotografias ou desenhos para reconhecer os padrões desejados. A parceria, que teve um ano de duração, foi capitaneada por pesquisadores do Instituto SENAI de Inovação em Sistemas Embarcados (ISI-SE), em Florianópolis, e da holding catarinense Christal, detentora de marcas que fabricam um portfólio extenso de produtos, entre os quais peças automotivas e sistemas mecânicos.
Concluído em junho, o projeto teve como resultado a prova de conceito de uma plataforma de few-shot learning, uma estrutura de aprendizado de máquina que classifica e identifica objetos mesmo sendo alimentada com um conjunto restrito de parâmetros de referência. A prova de conceito é um estágio intermediário do desenvolvimento de uma inovação, em que a viabilidade de sua implementação prática é verificada em um ambiente semelhante ao real. Na escala de maturidade tecnológica (TRL, na sigla em inglês) que vai de 1 (pesquisa básica) até 9 (produto no mercado), a ferramenta de few-shot learning evoluiu do nível 2 para o 4.
Esse tipo de sistema de IA vem sendo testado desde meados da década passada em universidades dos Estados Unidos e do Reino Unido, ou em empresas como a Google Deep Mind e a IBM, e obtém resultados promissores com base em poucos exemplos ou tentativas. Em linhas gerais, o few-shot learning permite fazer generalizações a respeito de dados com os quais os algoritmos não tiveram contato durante seu treinamento. O conhecimento aprendido em uma tarefa pode ser reutilizado para melhorar o desempenho em uma tarefa relacionada.
Uma vantagem desse tipo de abordagem é que ele dispensa o uso de computadores muito potentes, necessários para o processamento de grandes volumes de dados, e acelera a geração de resultados. Isso reduz custos e coloca o aprendizado de máquina ao alcance de mais empresas. “O few-shot learning não substitui o aprendizado profundo, cujo sucesso depende da disponibilidade de milhares e até milhões de dados, mas é uma boa opção quando os dados são escassos ou então é difícil ou demorado reuni-los”, explica Flávio Gabriel Oliveira Barbosa, líder de equipe de Visão Computacional do ISI-SE e responsável técnico pelo projeto. “No aprendizado de máquina por aprendizagem profunda gasta-se muito tempo em levantar dados e rotulá-los. Se a máquina consegue aprender com menos exemplos, o processo se acelera.”
André Luiz Paza, coordenador de Inovação da Christal, conta que, antes de celebrar a parceria, já havia uma aproximação da holding com o ISI com a intenção de resolver desafios tecnológicos do chão de fábrica. “Produzimos vários tipos de peças e de componentes mecânicos e, como acontece em qualquer parque fabril, temos problemas a superar, como dificuldades para inspecionar os produtos”, explica.
A detecção de eventuais peças oxidadas ou defeituosas sempre foi feita pelo olhar humano e depende de uma pessoa dedicada a esse trabalho. A possibilidade de automatizar a tarefa, em ambientes de manufatura avançada, é bastante atraente. “Ao usar a inteligência artificial, eu poderia coletar dados, compreender quais produtos têm falhas com mais frequência ou em que dias ou lotes específicos isso acontece e aperfeiçoar o controle de qualidade”, afirma Paza.
Apesar de tentadora, a estratégia parecia impraticável. De um lado, a escala de produção da Christal e das cinco marcas do grupo (Rudolph, Rufix, rup!, Usitim e Movai) não justificava o investimento necessário para desenvolver esse tipo de tecnologia. De outro, seria muito demorado reunir uma quantidade suficiente de imagens ou desenhos de inúmeras peças fabricadas, cada uma com defeitos ou problemas específicos, a fim de treinar algoritmos seguindo os recursos usuais de aprendizado de máquina.
Maturidade | A oportunidade de formular uma tecnologia alternativa surgiu em 2021 quando a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), organização que financia pesquisa e desenvolvimento (P&D) em empresas, lançou um edital em uma modalidade de apoio denominada Basic Funding Alliance (BFA), que é voltada a patrocinar projetos com nível de maturidade tecnológica ainda incipiente, de 2 até 4, na escala que vai até 9.
Usualmente, a Embrapii adota um esquema de financiamento tripartite, investindo em cada projeto um certo valor, que não precisa ser reembolsado pela empresa proponente. A companhia deve, contudo, aplicar uma contrapartida igual ou superior à quantia da Embrapii, de forma a alavancar o investimento. Os centros de pesquisa credenciados contribuem com uma terceira parcela, mas não com dinheiro em espécie e sim com as horas de trabalho de seus profissionais e a estrutura de seus laboratórios.
Já na modalidade BFA, a partilha de recursos é diferente e mais vantajosa para as empresas. Como o alvo são projetos com risco tecnológico alto, em que tanto os investimentos quanto as chances de insucesso são elevados, a maior parte dos recursos aplicados vem da própria Embrapii. A organização investiu R$ 1 milhão na plataforma de few-shot learning, enquanto a contrapartida das empresas e dos centros de pesquisa envolvidos se limitou a R$ 100 mil.
Consórcios | A fim de reunir massa crítica para superar desafios tecnológicos complexos, essa modalidade de financiamento também exige a formação de consórcios que envolvam ao menos duas instituições de pesquisa credenciadas pela Embrapii, duas empresas e uma startup. As principais âncoras foram o ISI de Florianópolis, que concebeu e coordenou o projeto, e a Christal, que validou as soluções em um ambiente real e recebeu a prova de conceito da plataforma.
Outras instituições de pesquisa auxiliaram na vertente do projeto em visão computacional, o campo da IA que permite que os computadores obtenham informações de imagens e vídeos. O Instituto de Tecnologia para o Desenvolvimento, o Lactec, de Curitiba, trabalhou com classificação de imagens, enquanto a Fundação Certi, de Florianópolis, contribuiu no processo de segmentação de imagens, no qual pixels são associados a objetos específicos. A Fundação CPqD, de Campinas (SP), trabalhou em uma segunda vertente do projeto: o processamento de linguagem natural, a mesma tecnologia usada por ferramentas de IA generativa como o ChatGPT, que confere a computadores a capacidade de interpretar e compreender a linguagem humana.
“Estamos conversando sobre a continuidade do projeto. As aplicações desta tecnologia são virtualmente infinitas e podem ser aplicadas para múltiplas demandas das indústrias”, explica Barbosa. Ele enumera possibilidades, como mapeamento de problemas na análise de imagens de culturas agrícolas, diagnóstico de doenças por meio de imagens, contagem de objetos ou reconhecimento de gestos, entre muitas outras. A propriedade intelectual da tecnologia e seus códigos foram compartilhados com as empresas participantes. “Criamos uma plataforma básica e queremos convertê-la agora em uma ferramenta aplicada, porque o projeto só vai começar a gerar valor quando a tecnologia for efetivamente utilizada”, explica Paza, da Christal.
Aplicações da IA na indústria
Processos
Manutenção preditiva | Sensores conectados às máquinas enviam dados em tempo real, permitindo que a IA identifique padrões e preveja falhas antes que ocorram.
Gestão de estoque | Análise de dados de vendas, produção e fornecedores para otimizar os níveis de estoque.
Controle de qualidade | Sistemas de visão computacional e aprendizado de máquina podem identificar defeitos com maior precisão e rapidez do que a inspeção humana.
Robotização | Robôs equipados com IA podem realizar tarefas repetitivas e perigosas, liberando os trabalhadores para atividades mais complexas.
Produtos
Design generativo | Criação de múltiplas opções de design para um produto, considerando fatores como materiais, custos e funcionalidades.
Personalização em massa | Oferta de produtos personalizados em escala a partir da análise de dados dos clientes.
Novos materiais | Aceleração do processo de descoberta de materiais com propriedades específicas, como maior resistência ou menor peso.
Tomada de decisões
Análise de dados | Processamento de grandes volumes de dados para identificar padrões e tendências.
Simulações | Utilizadas para testar diferentes cenários e otimizar processos antes de implementá-los na produção.