Rafael Lucchesi: “Nos últimos 40 anos a indústria tem sido rigorosamente penalizada no Brasil. Pagamos muitos tributos e recebemos muito pouco em agendas de políticas públicas. Temos que interromper o processo de primarização da economia” - Foto: Filipe Scotti
Há oportunidade para o Brasil iniciar um processo de reindustrialização?
Certamente. Se o Brasil tiver ambições, e temos, a construção do futuro passa pela reindustrialização. Se queremos emprego, renda e desenvolvimento sustentável só há um caminho: a indústria. Se quisermos interromper o processo de empobrecimento e de perda de importância relativa do Brasil no mundo que acontece nos últimos 40 anos, temos que resgatar a capacidade de pensar o País a partir das principais cadeias de agregação de valor. Hoje temos uma estrutura industrial 20% maior do que tínhamos em 1980, o que é impensável. Ela deveria ser muito maior, a estrutura industrial deveria dobrar a cada sete anos se tivéssemos o ritmo que tivemos em diversos períodos durante cinco décadas, quando o Brasil crescia entre 6% e 7%. O País tinha um claro caminho de desenvolvimento econômico e de renda, baseado na industrialização, e liderou o crescimento mundial entre 1930 e 1980. Chegamos a ter 3% do PIB global, mas reduzimos a participação para 1,3% porque o País se reprimarizou.
Hoje há visão preponderante de que o agro é a locomotiva do País?
Isso existe e é uma visão equivocada, que não para de pé em lugar nenhum do mundo. As cadeias do agro são curtas e não requerem serviços tão sofisticados. Isso faz com que a complexidade econômica se reduza, o que é chamado de especialização regressiva. Estrangula o desenvolvimento e gera problemas crescentes de balanço de pagamentos, devido ao aumento da importação de produtos. E, fora isso, vamos estar dependentes dos ciclos de preços internacionais. Nos últimos 40 anos a indústria tem sido rigorosamente penalizada no Brasil. Pagamos muitos tributos e recebemos muito pouco em agendas de políticas públicas. Temos que interromper o processo de primarização da economia, em que fomos perdendo tecido industrial. É a indústria que assegura ganhos de produtividade, estabelece cadeias produtivas mais longas e demanda serviços mais sofisticados, gerando empregos de maior qualidade.
Como trazer novamente a indústria para o centro da agenda?
Nós perdemos a capacidade estratégica de pensar no futuro. Temos que pensar a indústria como projeto de país, não como defesa corporativista de empresários. Já compreendemos isso no passado. Agora o Brasil deve reinterpretar a sua história, primeiro olhando o que o mundo faz. Quem conduziu a China a sair da condição de ter 1% do PIB americano e ser hoje a maior economia do mundo? Foi a indústria. Também foi a indústria que puxou o crescimento do Japão e está no centro do processo de reconstrução econômica da Alemanha. Os Estados Unidos protagonizaram a segunda revolução industrial, a do motor a combustão interno e do motor elétrico, na virada do século 19 para o 20. Agora partem para um programa centrado na indústria liderado pelo governo Biden e, interessante, são atos bipartidários, há um consenso, uma hegemonia em torno dessa ideia. Isso o Brasil precisa resgatar. Temos que ter ousadia em nosso Sistema Indústria, como Roberto Simonsen (fundador da FIESP) teve no passado, de liderar um debate nacional em torno da importância da industrialização. Isso não nasce da geração espontânea. Daí a importância da Academia FIESC de Negócios. Santa Catarina pode liderar esse processo.
É preciso envolver o setor público para a formulação de uma política industrial?
É a combinação de um consenso, de esforço de país. Tem que haver a coordenação de estratégias empresariais de um lado e ao mesmo tempo o impulsionamento de uma agenda de políticas públicas. Não é estatização de economia, mas estratégia de impulsionamento casado. E precisamos destravar o Brasil, com menos burocracia, estado mais eficiente, ambiente de negócios mais favorável. O industrial brasileiro carrega uma mochila duas vezes mais pesada do que os concorrentes, que é a carga fiscal. Por que pagamos o dinheiro mais caro do mundo? Por que o Brasil não faz uma revolução na educação para termos um salto de produtividade do trabalho? É necessário construir uma estratégia de país que tenha como meta a construção e a distribuição de riqueza.
Essa visão não se conflita com propostas mais liberais para a economia?
Liberalismo no mundo só existe na universidade para iludir pessoas ingênuas, pois o mundo real envolve complexidade. Se queremos continuar trocando as riquezas brasileiras por espelhinhos dos colonizadores, é um ótimo caminho pensar em liberalismo. Mas devemos pensar o que os países fazem verdadeiramente. Quando os Estados Unidos ficaram para trás na corrida espacial o estado criou a NASA (agência espacial) e a Darpa (divisão de alta tecnologia do exército), e houve uma era de ouro. Quando o Japão fez tremer os EUA pela capacidade da sua engenharia, eles investiram na integração de universidades e empresas, inovação, startups. Tudo isso que tanto se comenta hoje é fruto de uma reconfiguração nascida no estado. Os EUA têm o maior discurso liberal, mas sempre tiveram o estado com forte ação impulsionadora das agendas estratégicas. É claro que a força da economia de mercado é vital, e as regras do mercado têm que ser respeitadas. Não podemos cair no retrocesso de um estatismo atrasado, mas também não dá para entrar em um liberalismo tosco.
Quais as oportunidades para o Brasil diante das grandes transformações – tecnológicas, climáticas, geopolíticas – por que passa o mundo?
O Brasil tem um grande mercado, o que é elemento-chave para se ter uma grande indústria, mas ela tem que transcender os limites do mercado interno. Precisamos resgatar posição de liderança no mercado sul-americano e avançar em outras regiões. Buscar uma melhor integração produtiva com os Estados Unidos e a Europa, o que inclusive nesse novo contexto de geopolítica é uma enorme oportunidade. Da mesma maneira que a pandemia fez saltar aos olhos da humanidade a importância da cadeia sanitária e industrial, para nós brasileiros despertou também a possibilidade de uma integração maior com o bloco ocidental. O movimento da guerra entre a Rússia e a Ucrânia tende a consolidar uma maior integração da Rússia com a China, o que abre oportunidades, por exemplo, na área energética. Uma das principais agendas dos EUA é a energia. A transição energética que a Europa faz com novas formas de economia sustentável – ESG, hidrogênio verde – estabelece uma enorme plataforma de possibilidade de desenvolvimento brasileiro, mas se ficarmos parados em berço esplêndido não ocuparemos essa posição. O ponto fundamental que se coloca é que agenda queremos, de regressão lenta – ou acelerada – ou ter ambição? A Irlanda saiu de uma economia agrária para serviços sofisticados. Israel era um kibutz e hoje é um ambiente startup. O Brasil é maior, mais complexo e podemos ter ambições muito maiores.