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Investir na produção de “carne de laboratório”, ou carne obtida por meio do cultivo de proteína animal, sem a necessidade de abater bois, porcos ou frangos, pode até soar supérfluo no Brasil, país que é o segundo maior produtor de carne do planeta e onde há terra e condições climáticas para expandir a criação de animais. Porém, para a JBS, líder mundial no mercado de alimentos, não há oposição entre produzir do modo convencional e cultivar proteína em laboratório.
“Algumas pessoas olham a carne cultivada como um competidor, mas a verdade é que há espaço para todos. Nas próximas décadas, o mundo terá mais 2 bilhões de pessoas para serem alimentadas. Hoje, 800 milhões têm dificuldade de acesso a um prato de comida”, afirma José Antonio Ribas Junior, diretor de Agropecuária e Sustentabilidade da JBS Foods.
Entre as vantagens prometidas pela nova tecnologia destacam-se a velocidade com que a carne pode ser produzida, que é contada em dias e semanas (a criação de um boi para abate pode levar quatro anos), o consumo menor de água e de energia e o seu apelo ecológico: não demanda o uso da terra e produz poucos gases estufa. A estratégia pode atrair novos consumidores, como uma alternativa para quem quer consumir proteína mas não gosta da ideia de que a origem da comida é um animal abatido. Ou então para quem busca um tipo de proteína com menor impacto ambiental.
US$ 300 milCusto do primeiro hambúrguer in vitro da história, em 2013
US$ 10Custo atual
Todas essas oportunidades e atributos justificam a corrida pelo domínio tecnológico e de processos para tornar o produto viável, e Santa Catarina já conquistou um lugar de destaque neste mercado: Florianópolis vai sediar um centro de pesquisa da JBS dedicado ao cultivo de proteínas. A companhia investirá nos próximos quatro anos US$ 60 milhões no JBS Biotech Innovation Center, a ser construído em um terreno de 40 mil metros quadrados no Sapiens Parque, na capital catarinense.
Enquanto o complexo não fica pronto, os pesquisadores trabalham dentro do Instituto da Indústria, espaço da FIESC dedicado à inovação localizado no mesmo parque tecnológico, que além de realizar pesquisa aplicada também hospeda empresas no Habitat de Inovação. Os Institutos SENAI de Inovação e Tecnologia de Santa Catarina possuem infraestrutura de ponta e pesquisadores nas áreas de biologia molecular, alimentos, bioinformática e em desenvolvimento de novas máquinas e equipamentos prontos para atuar em conjunto com a JBS e na criação da nova cadeia de suprimentos. Já há termos de cooperação firmados entre as organizações para a realização de projetos.
Pecuária tradicional demanda grandes áreas, ao contrário da carne cultivada - Foto: Shutterstock
Quando estiver funcionando a todo vapor, o centro vai gerar mais de 100 empregos diretos, na maioria para profissionais com alta qualificação. Está prevista a construção de uma série de laboratórios, liderados por 25 pesquisadores com nível de doutorado de áreas diversas, das ciências da vida às engenharias e à bioinformática. Com uma abordagem multidisciplinar, sua missão será aperfeiçoar tecnologias e processos capazes de produzir proteína cultivada de qualidade e em larga escala, superando gargalos em etapas como a geração de linhagens celulares e o desenvolvimento de biorreatores para a multiplicação da carne.
“Tivemos uma competição saudável para definir onde o projeto seria implantado, se nos Estados Unidos, na Europa ou no Brasil”, explica Ribas Junior. “Meu papel foi mostrar que o Brasil era o melhor candidato”, diz, referindo-se tanto à existência no País de recursos humanos qualificados quanto à possibilidade de envolver setores da agroindústria brasileira no fornecimento de insumos.
Como se cultiva proteína
Tecidos ou células-tronco são retirados de animais vivos por meio de biópsia;
As células são isoladas e cultivadas em meio contendo substratos e nutrientes para que possam proliferar;
A multiplicação das células ocorre em biorreatores, que transformam matérias-primas em produtos usando agentes biológicos como células, enzimas ou microrganismos;
A proteína cultivada é usada na preparação de alimentos como hambúrgueres, almôndegas e salsichas.
Bioinformática | A definição de Florianópolis não foi ocasional. Um dos fatores que levaram à escolha foi a presença na cidade de massa crítica no campo da tecnologia da informação, formada sobretudo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Um dos nossos desafios é ampliar a compreensão de processos em nível molecular e celular. Os especialistas em bioinformática, que analisam grandes volumes de dados e utilizam algoritmos sofisticados, têm uma contribuição importante a dar”, explica o engenheiro Luismar Marques Porto, presidente do JBS Biotech Innovation Center, que conta com o supercomputador e os pesquisadores do Instituto SENAI de Inovação em Sistemas Embarcados para superar esses desafios.
Embora existam alguns obstáculos para alcançar a produção em massa com preços competitivos, a tecnologia está disponível em escala de laboratório e a disputa por este novo mercado mobiliza ao menos 70 grandes empresas e startups de dez países, segundo o The Good Food Institute (GFI) – em 2020, elas receberam US$ 360 milhões em investimentos. “Espera-se um grande avanço deste mercado nos próximos anos, impulsionado pelo potencial econômico desse tipo de tecnologia e também seu apelo ecológico”, afirma o engenheiro José Eduardo Fiates, diretor de Inovação e Competitividade da FIESC.
A carne de laboratório é obtida a partir de uma amostra de tecido ou de uma célula-tronco de qualquer animal vivo. O cultivo da proteína parte de uma célula inicial que, para crescer e se multiplicar, é alimentada com substratos e nutrientes. “Primeiro, você alimenta essas células com carboidratos. Elas gostam de glicose”, explica Porto. Também são necessários micronutrientes. O ferro, por exemplo, é usado para produzir hemoglobina, essencial na carne. “Há enzimas importantes para a proliferação celular. O processo é semelhante ao que o nosso corpo utiliza para produzir proteínas.”
A multiplicação das células ocorre em biorreatores, equipamentos capazes de transformar matérias-primas em produtos usando agentes biológicos como células, enzimas ou microrganismos. As células precisam ser organizadas de modo a ganhar volume e espessura. Para tanto, são colocadas em estruturas que servem como suporte, conhecidas como scaffold (andaime em inglês). Algumas empresas trabalham com impressão em 3D de carne para estruturar melhor os produtos.
“A carne tem que ter textura. É a combinação de células com suportes que dá formato ao produto”, explica a engenheira química Fernanda Vieira Berti, vice-presidente do Centro de PD&I, que já atuou em empresas de biotecnologia do Brasil e dos Estados Unidos. Os suportes e os micronutrientes são de origem vegetal e podem ser fornecidos por agroindústrias.
“O Brasil dispõe de uma diversidade de possíveis matérias-primas, entre extratos vegetais e carboidratos, que permitirão formar toda uma cadeia de produção a partir de Santa Catarina”, conta Ribas Junior. Além dos processos biológicos para cultivo de proteínas, o novo centro vai investir em tecnologias como fermentação de precisão e embalagens sustentáveis.
Luismar Porto e Fernanda Berti da JBS: meta é consolidar mercado - Foto: Divulgação / Paulo Vitale
Tigres | O centro de pesquisa em Florianópolis é o segundo grande movimento da JBS para se posicionar na corrida tecnológica para produção de carne de laboratório. O primeiro foi a aquisição, em novembro de 2021, de 51% das ações da espanhola BioTech Foods. A empresa tem uma planta piloto na cidade de San Sebastián e deve começar a comercialização em dois anos, com o início das operações de uma fábrica capaz de produzir mil toneladas de proteína por ano.
O foco da BioTech Foods é a pasta proteica, matéria-prima que abastecerá as indústrias de alimentos preparados. Marcas da JBS, como a Seara, deverão dar escala ao investimento feito na BioTech Foods. O JBS Innovation Center, contudo, não terá acesso à tecnologia da empresa espanhola, observa Berti. “Queremos desenvolver tecnologia própria, enquanto a BioTech Foods vai investir na ampliação de escala da tecnologia que já existe. Nossa proposta é ter novas rotas e alternativas tecnológicas e outras matérias-primas que possam ser exploradas em frigoríficos implantados em qualquer lugar do mundo.”
A expectativa é que a infraestrutura produtiva e logística de uma grande companhia como a JBS ajude a formar e consolidar o mercado de carne de laboratório. “Ninguém no mundo está produzindo ainda em grande escala”, diz Luismar Porto. Ele acredita que os primeiros produtos sejam hambúrgueres, almôndegas e salsichas, já validados em laboratório, para só mais tarde surgirem carnes com estrutura complexa. A ideia é abastecer o mercado com carne bovina, suína, de frango e de peixe, mas não há limitação em relação ao tipo de proteína a fabricar. “Devem aparecer produtos exóticos. Há empresas na Ásia falando até em cultivar carne de grandes felinos, como tigres.”
11,1%Crescimento anual de vendas de produtos substitutos à carne tradicional no Brasil (2015-2020)
40%Projeção de crescimento anual para os próximos 5 anos
Fonte: Euromonitor/JBS