Testemunha-se, há tempos, mudanças cada vez mais velozes e impactantes no âmbito da economia internacional. Toda a órbita capitalista é alcançada por esse irresistível fluxo de transformações, especialmente por conta do sistema financeiro estabelecido em rede. Os países jogam ora individualmente, ora em blocos econômicos, defendendo seus interesses e tentando se proteger ou avançar de acordo com as oportunidades e circunstâncias.
Da queda do muro de Berlim à pandemia Covid-19, vive-se o que o economista Marcos Troyjo chamou de globalização profunda, marcada pela busca obcecada por eficiência, produtividade e desregulamentação. O peso da máquina pública passa a ser alvo de processos reformistas que visam deixar os Estados “mais leves” para enfrentar o intenso embate em um mercado (que se pretendia) sem fronteiras.
Foi um período de forte atuação de organismos financeiros internacionais, como o FMI e o Banco Mundial. As políticas de concessão de crédito eram praticadas na lógica do condicionamento, ou seja, países subdesenvolvidos e emergentes receberiam crédito e poderiam participar da “festa” da globalização desde que abrissem seus mercados às empresas estrangeiras. Por conta de suas máquinas públicas “pesadas” e mercados ineficientes, estes mesmos países sofreram sérias privações internas com o pagamento de altas taxas de juros.
Tratava-se de uma quase hegemônica onda de liberalismo político e econômico que varria o ocidente (e parte do oriente), impulsionada pela ideia de via única, segundo as previsões de Fukuyama. Obviamente as regras desse jogo não seriam as mesmas para todos os jogadores. Os países desenvolvidos nem sempre foram tão (economicamente) liberais quanto se declaravam ser. Muitos, como fazem até hoje, foram protecionistas e estabeleceram condições voltadas a proteger ou potencializar suas economias.
De qualquer modo, o Brasil, apesar das agruras pelas quais passou naquele início de processo de globalização - sofrendo sérias recessões financeiras -, foi, em alguma medida, beneficiado com aquele movimento global de abertura de mercados. Com o potencial de sempre - graças às suas riquezas naturais, posição geográfica, clima e grandes extensões de terras - contava ainda com um bônus demográfico que se tornou estratégico. Refiro-me a uma densa e numerosa força de trabalho que, por seu baixo custo, tornava o país ainda mais competitivo.
Claro que poderíamos ter aproveitado melhor aquele momento de ampla globalização, mas não podemos dizer que não avançamos. A reforma gerencial de Estado foi realizada nos anos 1990, o que permitiu ajustar em parte a pesada máquina pública brasileira para os desafios do mundo globalizado. Foi o período de início da cultura da responsabilidade fiscal e de implantação do chamado tripé macroeconômico calcado no câmbio flutuante, meta de inflação e meta fiscal. Essas medidas, em compasso com o Plano Real, foram, à época, considerados o maior e mais bem-sucedido ajuste monetário, fiscal e econômico do mundo.
Passado o período de globalização profunda ou de hiper globalização, vive-se um novo momento chamado de “desglobalização”, com um ostensivo redesenho das cadeias de manufatura. No período da globalização era comum termos um produto feito na China mas com matéria-prima proveniente de dois ou três países e serviços contratados de tantos outros. Mesmo com os problemas enfrentados por esse novo modelo, é inegável reconhecer que países emergentes como Brasil e China foram beneficiados, e que países como Estados Unidos e os integrantes da Europa tenham ficado, em parte, dependentes, em situação agravada pela perda do bônus demográfico e pela escassez e alto custo de sua mão de obra.
A guinada dada pelo governo Donald Trump nos EUA e pelo Brexit no Reino Unido - aliada aos desdobramentos da pandemia -, acelerou o processo de mudança rumo a um mundo mais protecionista, em termos econômicos, e mais conservador, em termos políticos. A China, mesmo sendo um gigante, desacelerou e passa a crescer em ritmo mais lento. Seus custos não são tão baixos como no início da globalização, passando a sofrer forte concorrência de países como Índia, Tailândia, Malásia, Vietnã e Bangladesh, que ainda detém baixo custo produtivo.
Nesse reposicionamento das cadeias produtivas, o Brasil leva algumas vantagens. Porém, precisa ainda se tornar “mais leve” quando nos referimos à máquina estatal. Nossas virtudes já foram mencionadas. Mas com uma dívida que chega a alcançar 74% do PIB, tudo fica mais difícil. Estamos entre as maiores dívidas públicas em relação ao PIB entre os países emergentes. Veja-se: Índia 89%, China 77%, África do Sul 67%, Coreia do Sul 50%, México 49%, Indonésia 40%, Turquia 32%, Arábia Saudita 30% e Rússia 17%, segundo dados da Revista Veja.
Com esse ritmo de crescimento da dívida pública de aproximadamente 2% ao ano, aliado a uma carga tributária em aproximadamente 34% do PIB, precisaríamos de um ritmo de crescimento forte tal como o da China ou Índia, e essa não é a nossa realidade. A preocupação já chegou ao Ministério da Fazenda, que tem tentado medidas de contenção para redução do déficit fiscal. Além do arcabouço fiscal (que substitui o teto de gastos) e da recém-lançada reforma tributária, o Governo precisará ser firme na contenção de gastos para que o país possa bem performar nesses tempos de desglobalização e de protecionismo mundo afora. Mais uma vez, só depende da gente.