Florianópolis, 30.10.2024 - O economista e professor do IBRE-FGV, Samuel Pessôa, acredita que sem medidas de ajuste fiscal a dívida pública do país vai subir 14 pontos percentuais até 2027, alcançando 86% do PIB brasileiro. “A trajetória da dívida pública é insustentável. Vai passar de 72% do PIB para até 86% do PIB, inviabilizando a capacidade de investimento”.
Para ele, o arcabouço fiscal é bom, mas é preciso resolver duas inconsistências para conseguir resultados efetivos. A primeira é a indexação de benefícios previdenciários ao crescimento do salário mínimo. A segunda questão é o limite constitucional de aplicação de recursos na saúde e na educação. “É preciso que os mínimos constitucionais sejam consistentes com o teto global de gastos”.
Acompanhe os principais trechos da entrevista exclusiva do economista à Indústria News. A entrevista completa pode ser vista no Youtube.
1 - Qual é o principal problema que o Brasil precisa enfrentar hoje para ter um crescimento sustentado?
O maior problema certamente é fiscal. A gente tem inúmeros problemas em diversas áreas, mas o maior problema que impede que nós construamos um regime macroeconômico sustentável é o desequilíbrio fiscal estrutural. O que isso significa? Significa que, em condições normais de operação da economia brasileira, o Estado tem uma receita que é inferior às obrigações dele. Isso gera um acúmulo de dívida que não é sustentável. Uma hora esse negócio explode, pode virar inflação, pode virar alguma outra coisa.
2 - É possível resolver essa questão ainda nesse governo?
Eu acho que esse governo pode encaminhar algumas soluções. Mas a impressão que eu tenho é que uma parte significativa vai ficar para o próximo governo. Sempre há a possibilidade de a liderança pautar o tema. Com a sua liderança junto ao Congresso Nacional, aprovar os projetos de lei que são necessários para que nós consigamos equilibrar o orçamento público a longo prazo. Você tem que fazer duas medidas imediatas. A primeira é ter um índice de aumento do salário mínimo real que seja compatível com o crescimento da receita. O segundo ponto é que o indexador dos mínimos constitucionais que precisam ser gastos com saúde e educação também tem que mudar.
O indexador atual é a taxa de crescimento real da receita corrente líquida. O problema é que você tem um arcabouço fiscal que diz que o gasto agregado tem que crescer a 70% do crescimento da receita, com o teto em 2,5 e piso de 0,6. Essa regra que vale para o agregado, ela tem que valer para as partes, principalmente partes tão importantes quanto saúde e educação. Então podemos manter a vinculação? Podemos. Mas temos que ter um indexador que converse, que seja consistente com o arcabouço fiscal.
3 - Qual seria o pior cenário caso a gente não consiga fazer nenhum avanço nesse sentido? O que acontece no Brasil nos próximos 5 anos?
O Bolsonaro passou o bastão para o presidente Lula com a dívida pública em 72% do PIB. Esse negócio, na minha conta, vai para 86% no final de 2026. Então, Lula passará bastão. Seu sucessor pode ser inclusive ele mesmo, com uma dívida pública 14 pontos percentuais do PIB, maior do que a que ele pegou. E, evidentemente, se nada for feito, o próximo ciclo não vai aumentar 14 pontos percentuais. Vai aumentar mais. E uma hora esse negócio vira inflação, vira sei lá o quê. Então essa é a consequência.
Acho que a consequência mais importante é que uma sociedade em que o setor público é fiscalmente desequilibrado é uma sociedade que não consegue gerir bem os seus problemas. Eu costumo dizer que pior do que a inflação como mecanismo de solução do conflito distributivo, só guerra civil. Tem guerra civil e depois você tem a inflação. Inflação é uma espécie de guerra civil, entende? É uma coisa muito disfuncional. Impossível você ter progresso numa sociedade, você ter horizonte num mundo com inflação. E uma situação fiscal instável significa inflação à frente. Então a gente precisa lidar com isso para termos horizontes.
4 - Nos primeiros governos Lula, a gente teve uma estratégia que favoreceu o consumo. Muito possivelmente isso impactaria a inflação, mas foram usados outros mecanismos para controlar a inflação. Isso vai se repetir?
Eu acho que está se repetindo. O que aconteceu? Entre os dois primeiros governos Lula têm uma diferença grande. Nos primeiros três anos em que o ministro era Antônio Palocci, teve um regime de política econômica, e saiu o Palocci, entrou Guido Mantega, e o regime de política econômica mudou. Na verdade, tem uma grande continuidade entre o governo Lula 2 e o governo Dilma 1. O ministro era o mesmo. A política econômica era a mesma. Lula 1 foi uma coisa diferente; gerou muitos bons resultados que o próprio Lula colheu à frente.
No período que vai de 2006 a 2013, tem algumas coisas que explicam porque a inflação explodiu. Nesse período, o superávit primário estrutural do governo central caiu de um superávit de 2% do PIB para um déficit de aproximadamente 1%, então houve uma piora de 3 pontos percentuais nas contas públicas da União. Como isso não gerou inflação? Não gerou inflação porque a gente importou. E essa absorção de bens de fora ajudou a conter os preços aqui no Brasil.
Em 2005, o Brasil tinha um superávit na balança comercial de 4,3% do PIB (dados do IBGE a preços de 1995). Em 2013, elas viraram deficitárias. Tem uma virada de mais de 8 pontos percentuais, então olha o gigantismo disso. A gente, sistematicamente, passou a importar mais de 8 pontos percentuais do PIB em 2013 a mais do que absorvíamos em 2005. Se você olhar o PIB nesse período, ele cresceu 30%. A absorção - a soma do consumo, mais o investimento aqui dentro - cresceu 41%, 11 pontos percentuais a mais. Então essa enorme absorção externa impediu que a inflação explodisse.
Mas é fato que você só absorve coisas que dá para botar no navio, no contêiner e trazer para cá. Um monte de coisas não são transacionáveis. Então a inflação de serviços explodiu. A gente teve uma aceleração inflacionária e a inflação de preços livres, que em 2004 até 2005 era de cerca de 3%, em 2013 estava rodando a 6%. Os preços administrados estavam sendo controlados, então estavam mais baixos, mas quando se olha só preços livres, tem uma clara aceleração da inflação, e essa aceleração é muito concentrada em serviços.
Além disso, estava acontecendo uma coisa que está acontecendo agora - e que ainda não está grave porque está começando -, mas aconteceu durante muitos anos seguidos, que é o fato de os salários reais estarem subindo mais rapidamente do que a produtividade do trabalho. Entre 2007 e 2013, os salários subiram 40 pontos percentuais acima do crescimento da produtividade média do trabalho do país. Foi assim que se acomodaram os desequilíbrios.
5 - Esse aumento das importações líquidas, significa que, para o Brasil, a globalização funcionou menos beneficamente do que para outros países?
Foi uma escolha que a sociedade fez, porque a sociedade escolheu o presidente Lula e o reelegeu várias vezes. Essa escolha gerou um crescimento do consumo muito mais rápido do que o crescimento do PIB. E um investimento que também cresceu mais do que o PIB. Se o consumo cresce mais do que o PIB e o investimento cresce mais do que o PIB, como as coisas se ajustam? As exportações líquidas foram o que permitiu que as partes coubessem.
O fato de a gente conseguir ajustar por exportações líquidas manteve a inflação dentro de certos limites. Ela até cresceu, mas ela não cresceu muito mais porque a gente tinha como cobrir uma parte do excesso de demanda por meio de importações. Tem uma questão aí que é: a sociedade escolheu consumir mais, não é? Então está dado. A gente usou a globalização para tapar os buracos aqui, as carências de oferta que, de uma forma, não gerava muita inflação.
6 - Como é que o Brasil pode resgatar essa produtividade do trabalho?
Produtividade do trabalho é um problema microeconômico, não é um problema macroeconômico, não é câmbio, juro, não é nada disso. É qualidade do sistema público da educação e estruturas de incentivos que estimulem a boa alocação dos fatores de produção. Essencialmente é isso.
A educação é uma agenda de longuíssimo prazo. Então a gente tem que procurar melhorar as nossas instituições para reduzir a má alocação dos fatores de produção. Uma medida importantíssima foi a aprovação da reforma tributária, que em 10 anos vai gerar uma melhora grande nessa alocação.
Com a plena efetividade da reforma tributária, a gente vai tirar um peso sobre a indústria de transformação. A indústria de transformação sofre mais do que os outros dois setores - serviços e agropecuária - por dois motivos: a carga tributária sobre ela é maior do que na média. E o segundo motivo: ela que sofre mais problemas pela elevada complexidade tributária, elevado custo de conformidade e um enorme nível de litígio tributário que tem no Brasil. A indústria de transformação sofre mais do que os demais setores porque as cadeias produtivas são mais longas. Então gera muito mais custo de conformidade, muito mais litígio.
A nova estrutura tributária vai encaminhar esses dois problemas. Eu acho que a gente vai estar pronto quando essa nova estrutura tributária estiver operando, para a gente unilateralmente abrir muito mais a economia, reduzir mais tarifas e reduzir barreiras não tarifárias ao comércio.
Depois, simplificando muito a estrutura tributária, eu diria que o próximo passo é a gente reduzir pesadamente os regimes tributários especiais. As “pejotinhas” e o Simples. Numa estrutura tributária mais simples, não tem motivo para a gente criar esses regimes tributários especiais. Esses regimes tributários especiais estimulam o pequeno produtor e, ao contrário do que as pessoas acham, o pequeno produtor não gera emprego, crescimento. O pequeno produtor gera estagnação econômica e subdesenvolvimento.
7 - Significa que a política do Lula de investir nas “campeões nacionais” era uma estratégia acertada?
Não, porque era toda errada. Não tinha critérios. Não é assim que a gente cria os campeões nacionais. Aquilo foi um desastre. Foi uma tentativa de simular algumas políticas que foram adotadas pelos tigres asiáticos. E lá, essas políticas funcionaram relativamente bem. Se você chegar para mim, e me disser que uma coisa funcionou super bem na Coreia e me perguntar se funciona aqui - conhecendo a Coreia e conhecendo o Brasil -, eu diria que se alguma coisa funcionou bem na Coreia, eu tenho bons motivos para achar que essa mesma coisa não funcionará aqui.
Então acho que a gente tem que procurar nosso caminho. O nosso caminho é mais pela homogeneidade tributária. Tratar os iguais da mesma forma. E aí a gente pode imaginar alguma ação estatal, com o objetivo de desenvolvimento industrial. Que era o que estava por trás das “campeãs nacionais”. A execução foi um desastre, a gente sabe disso. A gente sabe que tem alguns princípios básicos: primeiro é que política de desenvolvimento industrial tem que focar em pesquisa e desenvolvimento, em tecnologia. Ela tem que ter contrapartida e tem que ter prazo para acabar.
Dentro de determinados princípios, a gente pode estabelecer protocolos e ter algum espaço orçamentário para uma política mais ativa de indução estatal. Mas com os protocolos e tropicalizando para as nossas especificidades.
8 - A ideia de algumas dessas medidas é promover uma globalização, uma inserção maior do Brasil em cadeias globais. Como é que podemos fazer isso num momento em que as barreiras não tarifárias estão aumentando em outros países? Um estudo do FMI aponta que foram lançadas 2,5 mil políticas industriais por outros países desde 2020. Como é que a gente consegue vencer essas barreiras nesse momento que geopoliticamente não parece ser o ideal?
De fato a gente perdeu a janela de abertura do mundo. O mundo se abriu muito a partir da década de 1990 e a gente ficou parado. Agora que a gente dá um grande passo, que é a reforma tributária, que prepara a gente melhor para engatar no mundo, o mundo está querendo desengatar. Não podemos esquecer, no entanto, que essas coisas têm dinâmica e têm nível. O Brasil é tão fechado, e o mundo é tão mais aberto do que a gente, que mesmo com essa onda de fechamento do mundo, o mundo ainda vai ser mais aberto do que o Brasil, então tem espaço pra gente se integrar.
Essa onda de fechamento e política industrial é bem recente, então não está claro o que vai acontecer. Nada me diz que esse negócio daqui a 10 anos vai estar igual, porque pode dar tudo errado. E aí os países corrigem. Nem todo lugar é como o Brasil, que uma vez que você cria uma política pública, você não consegue desfazer ela nunca. Nos outros países, às vezes você tem uma capacidade maior de experimentar e se der errado, você volta. Então não está claro para mim que esta onda, que é muito recente, vai permanecer por um período longo de tempo.
Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina - FIESC
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